Contos 24

Ciclo M – O cheiro

Foi o cheiro perdido no ar anónimo que te trouxe de volta a mim. Cheiro indecente. Trouxe a tua pele branca, a textura nem sempre suave. Trouxe o toque. O toque, o nosso maior meio de comunicação que já não há. Trouxe-te a ti. Cheiro indecente. Trouxe a ponta dos meus dedos nos teus braços e as lágrimas nas comportas dos meus olhos. Eu era só há três minutos de paz. Há talvez durante um dia uma hora em que não me destróis. E o cheiro indecente logrou-me os três minutes de paz. O resto do dia com ele. Agora existes em todo o lado: és a minha omnipresença dolorosa. És o peso que me lança ao chão e me puxa até eu desistir. Já debaixo, submersa, és a corrente que me mantém lá inerte, só com as lágrimas nas comportas dos meus olhos. Tenho pálpebras de ferro. Cheiro indecente. É um cheiro invasivo que me abre buracos na carne. Trouxe-nos e já não existimos. Eu sou uma marioneta idiota e tu…? É o cheiro que me diz o que já não tenho. É o cheiro indecente que passa diante dos meus olhos e me mostra o que nunca mais vou poder ter.

Hoje foi este cheiro: 7.23 da manhã. Todos os dias uma coisa diferente. Este cheiro que te trouxe e te espetou no meu corpo. Com a intensidade do que isto era. Intensidade ubíqua que sai do meu estômago. E sangra. Cheiro indecente que ignora os meus apelos de misericórdia. Estocada de hoje.

Apaga-te de mim.
a

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