Contos 2

Ciclo F - Sonho

Hoje quando acordei já estava acordada e tu já existias fora do sonho que tinha sido o sonho que sonhei quando estava acordada mas pensava que estava a dormir ou, talvez quando estava a dormir, mas pensava que estava desperta. Por isso quando o despertador tocou sons metrónomos, tu já existias fora do sonho que ainda era o sonho não acordado do sono que ainda não era vigília.
Dúbio espaço espectral dos sonhos, era incerta a realidade esfumada, mas havia um toque tão físico entre as nossas mãos. A minha memória aguada tem somente essa recordação do sonho. O entrelaçar verdadeiro dos nossos dedos. E o toque... a pele. Não sei se sentia a tua pele ou a minha porque é sempre difícil saber se o que se sente com o tacto é o que está dentro ou o que está fora do que se é. Por isso não sei o que sentia, se o teu toque, se o meu; não sei se sentia as tuas células vibrantes debaixo da minha mão, se sentia a minha mão nos teus dedos. Sentia a pele, mas não sabia a causalidade. Era talvez o toque simbiótico que sentia.
Mas com o correr inexorável dos segundos inevitáveis fui perdendo a sensibilidade desse toque até ser somente uma recordação esvaecida. Memória de um sonho bom. Enigmática verdade que desconhece a sua existência, aqueles foram momentos que eu queria ter guardado na caixinha das recordações perenes e ter comigo sempre que de ti me lembrasse, sempre que contigo estivesse e isso não fosse inconveniente. Debalde. Tal não é possível. Como eterno não retorno. Não se pode re-provar cada instante até lhe exaurir o sabor, esvaziar de todo o sentimento, aniquilar todo o excesso até nada daí restar. Se eu pudesse fazer isso, conheceria agora as tuas mãos melhor do que as minhas, saberia o teu cheiro num olhar e sentiria o teu sabor com os meus ouvidos. Mas só se isso fosse tudo. Só se isso fosse já a perfeição desconhecida. Só se, depois de o ser, ambos quiséssemos que o fosse ainda.
Assim, um dia, não me lembrarei daquele toque que senti sem o experimentarmos. Assim não saberei o teu cheiro nem sentirei o teu sabor. Seremos sempre a distância que nos separa de um sonho. Daquele sonho que, dentro da minha cabeça, não ousou revelar-se.

[Novembro de 2004]

Pensamentos líquidos 2

Sobre palavras

Tenho poucas convicções. Tento restringi-las ao essencial para poder pôr tudo em causa. Mas estou sinceramente convicta que há sempre as palavras certas e só uma maneira de as dizer. Como o que escrevo agora. Um modo único para o dizer, pelo menos se quero ser verdadeira, se quero esgotar no que escrevo aquilo que quero transmitir.

E é por isso que acho ridícula a ideia de existirem sinónimos. Como é que uma palavra pode substituir outra se cada uma é única e única a maneira de dizermos o que queremos? Mais. Se os sinónimos significassem “igualdades” para quê a “segunda” palavra? O argumento imediato é pela fonética. Mas se assim é, as palavras deixam novamente de ser iguais para terem um peso diferente, o do som.

Percebem agora por que é que penso tanto antes de falar? Só existe uma maneira de dizer aquilo que quero, pelo menos, se quero dizê-lo em perfeição.

Pensamentos líquidos 1

Educação e os exames de acesso à faculdade


Às vezes tenho a sensação cruelmente nítida que a maioria das pessoas não percebe o valor da educação. Não percebem como é o elemento estruturante derradeiro ou talvez… primeiro. Não escrevo agora sequer de desenvolvimento pessoal no sentido de evolução, escrevo no sentido de adquirir competências e saberes. É fundamental reconhecer a necessidade de promover uma educação de qualidade que estimule o interesse pelo conhecimento. E promover uma educação que premeie o esforço e esse conhecimento.

É de conhecimento geral que a entrada na faculdade se faz a partir de uma nota de entrada calculada como uma média ponderada entre a nota final de secundário e a(s) nota(s) da(s) prova(s) específica(s). Julgo, todavia, não ser de conhecimento geral que, actualmente, essas provas específicas podem advir de disciplinas até ao 11º ano ou do 12º ano. Isto significa que algumas específicas de entrada são feitas no final do 11º ano. Vou deixar para outros posts a discussão do esquema de educação. Este focar-se-á neste ponto específico.

Para além das dúvidas e inconsistências de informação proliferarem, designadamente nas escolas (instituições às quais a informação remetida é escassa!), a sensação de precariedade desta situação é tremenda. Gostava que se lembrassem desse tempo de espera para entrar na faculdade. Já não é uma altura fantástica, agora imaginem se nem sequer percebessem o que estava em causa e para o que estavam a trabalhar. Mas adiante.

Cheguei a ver provas de 11º ano. Falaram-me de outras de 12º ano. Interessantes. Um esquema muito “norte-americano”. A maior parte das provas é constituída por análise de textos. Por exemplo, em biologia-geologia. Por exemplo, em físico-química. Ah, esqueci-me de um detalhe, o bulk dos exames é escolha múltipla, correspondência e verdadeiros/falsos. Interessante. Exige que se saiba pouco. A interpretação dos textos serve para as cruzinhas. Interessante, de facto. E vergonhoso. É melhor acertar por acaso do que avaliar realmente o que sabem... e depois há as perguntas que subestimam a inteligência dos alunos, para não dizer que a ofendem. Eles merecem melhor do que isso.

Soube também que resoluções correctas de exercícios eram avaliadas a 0 (zero) se não fossem a resolução preconizada pelos critérios. Repito: resoluções correctas. Pensei que as provas, em educação, serviam para avaliar conhecimentos. Espanto. Afinal servem para avaliar capacidade de adivinhação. Chamemos a Ms. Trelawney do Harry Potter. Decerto será útil.

Nem sequer me vou pronunciar sobre os erros. Ok, se calhar, vou. Acho de uma falta de responsabilidade e de uma falta de respeito inqualificáveis. E, em termos práticos, estes erros podem arruinar a forma como pessoas que, estarão provavelmente um pouco nervosas, fazem a gestão de tempo durante a prova.

Et voilà. É este o nível de confiança que se tenta incutir aos jovens. É este o respeito que eles merecem numa fase tão decisiva das suas vidas. Como se essa fase não fosse já cheia de dúvidas e indecisões...

Apontamentos fugazes 5


Sobre Deus. Novamente.

«(…) Se existissem deuses, como poderia eu suportar não ser Deus? Portanto, não há deuses. (…)
Na procura de conhecimento só experimento o prazer da minha vontade, ocupada em engendrar, em engrandecer (…)
Foi esta vontade que me afastou de Deus e dos deuses; que nos ficaria para criar, se existissem deuses?»


Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra, Guimarães Ed., pags. 105 e 107



Eu sei que muitas pessoas consideram Niezsche um porco chauvinista. Eu acho-lhe graça. Podia ser pouco modesto, escrever umas coisas que, à primeira vista, poderiam parecer misóginas, mas eu não consigo deixar de o ler com uma ironia tremenda. Acho que vou passar a chamá-lo Mr. Ironic.

Mas leiam isto com algum cuidado, não estudei a obra do Mr. Ir… Nietzsche com cuidado. Sou só, de vez em quando, leitora.

Trivialidades 2

Sobre o que se quer ser

e a razão inexplicável pela qual, quando vejo o Jamie (Oliver) cozinhar, me apetece ser chef.

Apontamentos fugazes 4

Classificados

Jovem criadora de «Certezas hipotéticas» procura companheiro para discutir "Six feet under". Raios, agora que tenho um blog, é que a série acaba...

Recomendações 2



Parabéns sinceros e merecidos aos Expensive Soul pelo último álbum - Alma Cara. Tentei vários trocadilhos com Alma Cara, mas mereciam melhor do que o que consegui. Por isso fica só a recomendação. Posso, todavia, dizer o vício que criaram em mim. Na vossa alma. Cara, decerto.

Contos 1


Sentimento de si


Quando eu era pequenina e passeava com os meus pais. Viajávamos de carro e eu pensava as pessoas que via. Acontecia sempre que passeávamos de carro. Nos fins-de-semana. Nas férias. Nas viagens.
E aí eu sabia que essas pessoas existiam. Existiam. Não como nos outros momentos eu sabia que elas existiam. Não como uma planta existe. Elas existiam e sabiam que existiam. E aí. Só aí eu reconhecia a plenitude da existência. Aquilo a que o António Damásio chama “sentimento de si”.
Essas pessoas também viviam uma vida. Podia ser mais ou menos delas, mas era a vida de cada uma. Essas pessoas também pensavam. Essas pessoas, talvez, quando me vissem encostada ao vidro da porta esquerda traseira, talvez, pensassem naquilo que eu pensava. Que eu também era um ser humano e que sabia que existia.
Que fascínio pode ser maior? Saber que não sou a única. Porque eu sabia que os meus pais existiam. As outras pessoas que eu conhecia existiam. Mas eu nunca tinha visto as pessoas que via naquelas viagens de carro. E elas também existiam. E as outras pessoas que eu nunca tinha visto, nem nunca iria ver também existiam. E como isso é fantástico, verdadeiramente genial…
Quando eu era pequenina e passeava com os meus pais. Viajávamos de carro e eu pensava as pessoas que via. E foi nessas viagens mágicas que eu percebi os seres humanos. Percebi que todos os seres humanos existiam. Existiam mesmo que eu não os conhecesse. Existiam.
Sei agora que Vergílio Ferreira lhes chamava o “eu” dentro do “tu”. Sim, foi isso que descobri. Quando era pequenina. Sim, e isso é fascinante.

Maio de 2004

Recomendações 1


Muse


A luta interna para classificar este post foi tremenda. Porque mais do que uma recomendação, é uma homenagem, uma manifestação de admiração. E, no entanto. Não poderia escolher momento mais adequado para recomendar um álbum. Black Holes and Revelations. E aqui vou eu rumo à crítica musical. Inevitável. Mas não quero criticar, quero congratular, quero louvar. Aos meus deuses. Da arte. Aos super-humanos, à Nietzsche. :-) Mas deixemos a visão filosófica da arte para um post adequado. Merece mais do que ser apanhada a jeito noutro.

É o primeiro post de homenagem musical. Não poderia ser um post qualquer. Por isso, Muse. Andava distraída quando os Muse começaram. Ou então, abstraída. Foi, de qualquer modo, imperdoável. Deve rejubilar-se estes nascimentos. Agradecer-se até à exaltação. E, fundamentalmente, aproveitar. Aproveitar. Aproveitar. Aproveitar. Deixar a perfeição penetrar nos ouvidos e augurar por algo sempre melhor. Os álbuns anteriores dos Muse – Showbiz, Origin of Symmetry e Absolution [e o Hullabaloo] – são sublimes, progressivos, mas todos muito consistentes. Em poucas bandas se consegue uma simbiose tão perfeita entre o que é dito e o que é tocado. Os Muse são uma profusão sonora de perfeições. De qualidade. De… verdades. Poderia escrever sobre o uso inteligente da electrónica, poderia escrever sobre a extensão vocal do Matthew, poderia escrever sobre o poder dos Muse em palco, mas nada será alguma vez tão forte como ouvi-los e ter noção que existem algumas perfeições atingíveis.

Assustei-me da primeira vez que ouvi o Supermassive Black Hole. Senti não gostar tanto como normalmente gosto dos Muse. Senti o que poderia chamar de… desilusão. Impaciente. Estava, só, a ser impaciente. Estava a precisar de ouvir novamente. E novamente. Até perceber a diferença. E pensar que dificilmente me desiludiriam. Porque não resistem à evolução. E foi isso que fizeram neste álbum. Novamente.

Deixo aqui uma coisinha muito especial… ah, e o lindíssimo site http://www.muse.mu/

Follow through
Make your dreams come true
Don't give up the fight
You will be alright
Cause there's no one like you in the universe

Don't be afraid
What your mind consumes
You should make a stand
Stand up for what you believe
And tonight
We can truly say
Together we're invincible

During the struggle
They will pull us down
But please, please
Let's use this chance
To turn things around
And tonight
We can truly say
Together we're invincible

Do it on your own
It makes no difference to me
What you leave behind
What you choose to be
And whatever they say
Your souls unbreakable

During the struggle
They will pull us down
But please, please
Let's use this chance
To turn things around
And tonight
We can truly say
Together we're invincible

Together we're invincible

During the struggle
They will pull us down
Please, please
Let's use this chance
To turn things around
And tonight
We can truly say
Together we're invincible

Together we're invincible

[Invincible - Black Holes and Revelations]


So, to you guys, Matthew, Chris and Dominic, my most profound admiration and devotion. I most delightfully listen to your music and so I understand, as much as I can, that perfection is yet attainable.

Post Scriptum: Dificilmente acharia alguém melhor a quem devotar a primeira recomendação musical.

Poemas 1

Denial

Tell me a truth that I cant’ deny,
raised in a pure, deep blue sky.
Black, in shadows, echoes in my mind,
so hard I tried but now I can’t find.

No tears to cry and blame to feel,
just some shy smile that I can’t keep still.
You failed me again. I had no news.
I tried to see but saw only cloudy views.

Screams so loud were no one’s concern
laps around in a straight absurd.
What cowardice or strength kept me alive?

Maybe some love I had inside.
Some others I know didn’t try to hide:
I had some love to keep for life.

Junho de 2001

[para os meus pais e para a minha irmã]

Apontamentos fugazes 3


Sobre a razão

«Há coisas que não se explicam.» - mas têm explicação.

Apontamentos fugazes 2


Sobre palavras

Já repararam como é composta a palavra “cria-dor”? Será que quem faz crescer do nada cria sempre dor? (vd. “Homenagens 1”)

Apontamentos fugazes 1


Sobre Deus

«Dizer que uma coisa não existe é pressupor a sua existência para depois precisamente a negar. E é sobretudo admitir a importância disso que se nega. Se não, porque negá-lo?»
Vergílio Ferreira, Invocação ao meu corpo [p. 131]
É por isto que não sou ateia. E todavia. Senti necessidade de o dizer...

Trivialidades 1


Sobre o que se chama a um futebolista

Por que é que insistem em chamar o Camoranesi de Camaronesi ou Camoronesi. Ele é Camoranesi, Camoranesi. Também gostavam que vos chamassem Fensoca?

Homenagens 1

Liberdade

«Somos livres, como o sabemos na consciente vivência do acto de ser consciente. Somos livres, como o sabemos da possibilidade de se ser e de se saber que se é, da infinita e infinitesimal diferença entre mim e mim, entre ser-se o que se é e o saber-se que se é esse ser, da infinitesimal diferença entre o ser que é o nosso e o ter querido ser esse ser.
(…)
A primeira e a última demonstração de que sou livre está na simples enunciação disso mesmo, na sua problematização, ou seja na sua consciência, ou seja na consciência de mim. Mas de mim a mim a distância é infinita e nenhum raciocínio a pode preencher. Por mais colado a mim que eu me execute, como se executa o bárbaro ou o primitivo, há uma distância de vertigem nessa mínima distância entre o que faço e o saber que o faço E é aí que sou Deus. Aí, nesse subir de mim, nesse criar do nada, perfeitamente absurdo, porque do nada nada se cria – e eu criei.»


Vergílio Ferreira, Invocação ao meu corpo [p. 122 e 130]


[negrito meu]

Newborn

Não sei como se inaugura um blog. Não sei como se inaugura coisa alguma, para ser honesta. Sei só a necessidade de escrever. De dizer coisas. Até aqui, sempre para mim. Normalmente só para mim. Mas há uma altura ou houve uma altura em que tive vontade de dizer coisas a outras pessoas, outras pessoas que não eu. É sempre uma escolha, uma escolha entre guardar protegido o imo de cada um ou de o partilhar. Mas é também uma vitória. Sobre o medo. É uma audácia. Esta é a minha audácia.

Acho que começar um blog implica necessariamente que se queira dizer coisas. Verdades, mentiras; coisas. E eu queria dizer coisas. Como já há muito. E se não quero começar pretensiosa, queria talvez poder dizer aquilo que Vergílio Ferreira verbalizou em Escrever.

«Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua dedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos, pessoas que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de sempre. E para evocar e fixar o percurso que realizar, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e última que nos liga ao Mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão.»

Queria dizer coisas em catarse. Mas sem comprometer demais.

E à minha boa maneira, procurei a maneira perfeita de começar. Isto para alguém que diz não ter certezas, é curioso, não acham? A busca obsessiva da perfeição. Achei justo não começar comigo [sim, ignorem este post aparte o excerto que transcrevi!]. Começo com o meu mestre, o Vergílio Ferreira. É a maneira mais perfeita que posso imaginar. Vejam isto como um prelúdio. À Chopin, já que estou numa de perfeição!

Ah, um dia contar-vos-ei a história das certezas hipotéticas. Afinal as únicas que alguma vez poderei ter. Outras certezas não quero. Dir-me-iam que tinha deixado de pensar, e não me quero afastar da inquietude.

E, por isso, agora que expus o máximo possível, inauguro o blog, em exposição. Dou as boas vindas àqueles que vierem, se vierem por bem.