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Contos 7

Ciclo F - Adeus

[Termina aqui o Ciclo F. Hoje. Faz sentido que hoje termine um ciclo. Tenho que escolher outra letra para entretanto começar outro. Talvez D? ]


E a dúvida, novamente. Aquela que constantemente me atormenta. A incerteza. Aquela que me condiciona as acções. E tu. A fonte, destas dúvidas, de tantas incertezas. Mesmo que esconda ou disfarce os condicionalismos que me provocas. Se negasse, enganar-me-ia a mim. Se assentisse, enganar-me-ia também. E tu. Indiferente.
Julgava que se te deixasse dissipar de mim, restabeleceria uma qualquer tranquilidade possível, mas ganhei só uma tristeza. Uma tristeza sem densidade. Um vazio cheio de saudade. Uma falta de sentir falta. De ti. A necessidade da tua presença, da tua existência, diminuiu, desvaneceu com o decorrer anónimo de dias difusos. Dias em que não te vi, excepto quando te recriei inteiro no meu palco de dentro. Dias em que preferiste não me ver, enquanto ainda precisava tanto de ti. Dias que passaram lentos, intensos em sofrimento. Dias que me trouxeram a hoje. O dia em que já não sinto falta. De ti.
E, todavia. Sinto falta da dor. Do sofrimento de necessitar tanto de ti e não te poder ter perto. Sinto falta da necessidade obsidiante que tinha de te imaginar. De criar uma realidade etérea em que nos conseguia ver, aos dois. Via-nos próximos, conseguia imaginar a minha mão direita a tocar a tua face. Expectante. Sinto falta da angústia. Quando saída dessa realidade paralela. E ainda assim. Nesses momentos em que via o meu corpo chegar perto do teu e sentia a tua pele por debaixo da roupa de frio e criava uma possibilidade impossível. Sinto falta de ti? Não. Sinto saudade de sentir uma dor incomensurável enquanto sentia falta de ti. O meu masoquismo indecente.
Inevitavelmente. Coerentemente. Como sempre. Terei, desta vez, deixado passar a possibilidade de lutar por uma felicidade indiscreta que acredito não existir? Ou tê-la-ás negado? Por não a quereres, por não ser tua. Não ser nossa. Sei que, novamente, tudo será igual ao que sempre foi. Destino criado por mim. Inexoravelmente.
Sim, julgava que se te deixasse dissipar de mim, restabeleceria um equilíbrio. Mas como restabelecer algo que nunca possuí? Em mim. Agora, uns dias mais e a tristeza transforma-se em indiferença. Aquela. A minha companheira dos momentos constantes.
Mas, entretanto. Esta falta de sentir falta de ti é tão dolorosa como a necessidade que antes tinha da tua existência. Este é o dia em que sei. Sim, sei. É o dia em que já não sinto falta. De ti.
Adeus.

Contos 6

Ciclo F - Tragédia


Tive a certeza ao finalmente agarrar a tua mão que precisava tanto de ti. Esta noite. Mesmo depois do mundo à beira do precipício do fim. Das bombas e das tragédias. Da tristeza obsidiante à minha volta. Mesmo depois da tua tristeza.
Tinhas sido despedido, ou talvez tivesse deixado de existir o teu emprego, os teus empregos. Qual? Estavas triste e gostei que o tivesses partilhado comigo. Ainda antes da tragédia, já havia uma proximidade tão grande entre nós, já havia novamente as brincadeiras não inocentes das quais gostava tanto, já havia a cumplicidade que entretanto nos tinha abandonado, havia de novo os olhares, havia a consciência agradável da presença um do outro. E havia algo novo. O toque. Pela primeira vez, tocava-te intencionalmente e aceitava-lo intencionalmente. O toque entre as nossas peles, primeiro o toque entre as nossas mãos, em perfeito uníssono, quando olhei para trás, para ti, e estiquei o meu braço em busca e voluntariamente dirigiste a tua mão em direcção à minha para finalmente. Unidas. As nossas mãos. Unidas. Ainda antes da tragédia. Das bombas. Da destruição.
Pela primeira vez, o entendimento tácito tornou-se explícito nas nossas mãos. Só os polegares intercalados. Os outros dedos juntos e a cobrirem docemente parte da mão oposta. Os dedos sentem tanto. Puxei-te para veres qualquer coisa. Não sei o quê. Não importa, porque vieste. E durante todo o percurso, não sei se longo se curto, as nossas mãos juntas. Finalmente.
A tragédia veio depois. As bombas, a catástrofe, a destruição do mundo próximo. O teu emprego que desapareceu. A tua tristeza calada. O teu recolhimento. Mas quando saí de dentro da sala escura, estavas cá fora, à espera com essa dor espelhada na cara e pude, apesar da mágoa, tocar-te com a proximidade de quem quer estar junto. Eu de ti. E tu de mim.

E agora há uma angústia tão densa em mim como se o corpo fosse um granito, inimpermeável; por dentro só a dor o sofrimento, ubíquo infindável. Por fora, a minha máscara de sempre, o sorriso de sempre, a gargalhada de sempre, como se a dor fosse mentira e eu uma marioneta de felicidade. Verdadeira. Se antes me conseguias levar à exultação pelo som de duas palavras escondidas, agora, só a ideia da tua existência esquarteja-me aos pedaços por saber que estarás sempre demasiado longe de mim.
Depois do sonho, físico, a realidade, física e com ela a certeza hipotética de estares longe, afastado porque queres assim. E a dor, a tristeza, a infelicidade. Dentro de mim. Mesmo com o sorriso que minto a todos. Mesmo com a determinação que avaliam em mim. Mesmo. Já o tinha pensado antes, com outro alguém, mas agora possuo a certeza possível de que poderias ser um daqueles que faria a diferença, que me inverteria a tendência para gostar e não querer, querer e não gostar, gostar ou querer e fartar. Sei que estaria melhor se estivesse contigo, sei que seria mais feliz se estivesses comigo, sei que viveria este sonho sem tragédia nem que fosse por dias com a determinação que não tenho.
E sei que dói. Dói como golpes fundo no corpo. Dói como a certeza hipotética da infelicidade. Dói como se nunca fosse parar de doer. Dói como o sorriso com que minto a todos. Dói.
E quando tento parar de sofrer, sem te ver, à espera que fiques longe e eu não pense em ti, quando faço esforços da força toda que tenho para te esquecer, apareces assim num sonho. Apareces assim. Em mim. Novamente. E dói.

[
Março de 2006]

Contos 5

Ciclo F - Silêncio


Detesto-te tanto como tanto já te amei. Porque tarda a estocada final? Desfere o golpe derradeiro, enterra fundo no meu corpo a morte deste sentimento. Mas não sejas tão cruel como agora. Um prego. Um prego. Outro prego. E do meu sangue espesso escorre somente uma gota. ______________________________ Nenhum som. _____ e uma dor ______________________ goteja muito lentamente. Nunca será suficiente para matar.
Detesto-te tanto e mesmo assim. Só tarda o que sei existir porque me recuso a aceitá-lo. Como agulhas finas de dor. Sou um boneco vivo de voodoo. Nas tuas mãos. Um prego. Outro prego. E continuo sem encarar a verdade dos actos. _________________ Nenhum som. Gotejar silencioso, permite que o sangue se recrie e mantém-me num estado de morta-viva.
Detesto-te tanto mas não consigo. Não consigo deixar de te querer. Mesmo enganando o meu respeito por mim, traindo o meu orgulho de sobrevivente. E ainda outro prego. Outro prego. E mesmo com um silêncio de morte... ________________ Mesmo assim, não deixo de imaginar cenários proibidos. Por ti. Cenários idílicos que me deixei alimentar mesmo depois de cortar o amor. Retalhos.
Detesto-te tanto e tão incoerentemente. Sou composta de retalhos unidos pelos pregos que enterras na minha carne. Lentamente. É a dor que me mantém conexa. A tua crueldade que me mantém de pé. Mas um silêncio. _____________________ Um silêncio que me assusta. Tenho medo de não conseguir continuar. Neste silêncio. Enquanto outro prego. Cada vez mais fundo. E eu imune. Mas não à dor.
Detesto-te tanto e, no entanto. Se voltasses a olhar-me daquele modo e partilhássemos as palavras que antes eram só nossas. Sim, se voltássemos a criar o impossível engoliria os pregos de sangue e colaria os retalhos toscos até cantar sobre esse silêncio.
Fevereiro de 2006

Contos 4


Ciclo F - A certeza


Fizeste-me pensar palavrões que normalmente julgava pertencentes a pessoas pouco controladas. Para ti. Palavrões destinados só para ti. A mais ninguém poderiam estar reservados. Excepto. Excepto para mim. A quem estendi palavrões diferentes para acomodar a minha imbecilidade. Por ti. Fui uma imbecil por ti. E uma idiota. A idiota que conjecturou possibilidades entre nós dois. Impossíveis.
Detenho agora a certeza, sim, a certeza hipotética do que sempre devia ter sabido. A verdade. Seja lá isso o que isso signifique. Uma verosimilhança com os resultados. Uma tristeza de interiorização de inviabilidade. Uma… autenticidade que destrua ilusões. E esta certeza é agora mais cruel do que seria se não me tivesse enganado. Talvez a culpa seja só minha e eu não devesse ter fantasiado impossibilidades mas quase não controlo a mente quando fecho os olhos e vejo mais do que pode existir. Ainda que tente. Talvez apagar essas imagens, esconder-te atrás de um arbusto da mente, prender-te numa gaveta fechada. E respirar. Novamente. Passou muito tempo desde que respirei pela última vez. Só dióxido de carbono corre nos meus pulmões. Durante aqueles dias em que uma palavra tua me dava ar para enfrentar tempestades, achei não precisar de acumular ar puro para no futuro sobreviver. Erro. De quem sente o contentamento inverosímil. E agora sufoco no meu esbanjamento. Imbecilidade.
Deveria ter sido mais prudente. Deveria ter-me protegido mais. Bloqueado o jacto de sentimentos que cresciam. Por ti. Por saber que jamais seriam possíveis numa realidade em que ambos existíssemos. A minha imprudência fez germinar a dor e agora vivo só esse sofrimento. E destruo-me. Destruo-me por ser uma fraca que finge uma força que me deixou. Destruo-me para me castigar por ter acreditado. Destruo-me. Por ti.
E começo a achar que não quero sair desta tristeza ubíqua em mim, obsidiante. De ti. Trato com carinho esta angústia e pioro a dor que já havia em mim com a dor que não quero esquecer. Ainda que. Se repetíssemos aquelas palavras escritas, doces, ingénuas, voltaria a sentir os químicos do contentamento percorrerem-me o cérebro. E não sei. Não sei se conseguiria conservar a força para me lembrar do sofrimento da certeza hipotética. A certeza. Quando sei. E sei. Sei que tudo o que me deixou feliz foi só mais uma ilusão. De ti.


[Março de 2006]

PS. Só para saberem: a certeza hipotética não nasceu aqui, é muito anterior.

Contos 3

Ciclo F – Auto-perfídia

Houve uma inocência qualquer que me fugiu quando te conheci. A inocência da esperança. A esperança sempre me havia sido alheia, mas a inocência…transportei-a dentro de mim por alguns anos contínuos. Inocência infantil de esperança.
Roubaste-me essa inocência sem o saberes. Depois de ti, tenho noção dos limites da possibilidade, quando o exequível permanece nas minhas acções.
Talvez possa ainda mudar o mundo e, tal como Alberto Caeiro escreveu, reconhecer-me infeliz na tentativa. Mas defini-me tanto que já não posso mudar-me a mim!
E és tu o culpado deste realismo que me estilhaça para no futuro não me destruir de vez. A força que finjo é só mais uma manobra de diversão. De mim. Não olhes para mim. Não me vejas. Não percebes que assim me fazes inocente outra vez? A inocente que acredita ser possível. E eu? Eu sei que não é. Por isso não me faças mentir-me só porque me olhas assim. E não digas essas palavras que podem significar pouco mas me encantam tanto. Por favor, não o faças. Só se o não fizeres poderei ultrapassar a barreira, sentir a dor, mas continuar; assim, se o fizeres a dúvida habitar-me-á sempre e a serenidade habitará o vazio. E mesmo assim quereria ainda alguma certeza, alguma paz ou tranquilidade.
Queria saber. Principalmente saber que não me querias ou não me queres. Saber que esta angústia que me corrói se justifica pelo que sabes e eu não sei e saber que não te causo angústia semelhante. Saber que mesmo existindo um para o outro, não existiremos para nós dois. Queria só saber isso. Não é assim tanto pedir a verdade. Pedir a verdade que reconheço diariamente e matar definitivamente a esperança que teima em renascer. Queria só que me magoasses contundentemente…definitivamente, mas sem eu te pedir, sem te dizer que preciso disso como da água que me compõe o corpo. A dor da verdade e da certeza, mas a paz. Preferia, porém, sabê-lo num sonho para continuar a viver a mentira. A nossa mentira, as brincadeiras inocentes e as provocações indecentes num analgésico interesseiro…
E apesar de saber tudo isto, vejo-te dentro do meu teatro da mente, a representar a nossa mentira. E consigo imaginar-nos, não, na verdade consigo ver-nos num abraço perfeito, numa cumplicidade obscena, num beijo em uníssono, numa realidade paralela em que só a mentira é verdade.

[Dezembro de 2005]

Contos 2

Ciclo F - Sonho

Hoje quando acordei já estava acordada e tu já existias fora do sonho que tinha sido o sonho que sonhei quando estava acordada mas pensava que estava a dormir ou, talvez quando estava a dormir, mas pensava que estava desperta. Por isso quando o despertador tocou sons metrónomos, tu já existias fora do sonho que ainda era o sonho não acordado do sono que ainda não era vigília.
Dúbio espaço espectral dos sonhos, era incerta a realidade esfumada, mas havia um toque tão físico entre as nossas mãos. A minha memória aguada tem somente essa recordação do sonho. O entrelaçar verdadeiro dos nossos dedos. E o toque... a pele. Não sei se sentia a tua pele ou a minha porque é sempre difícil saber se o que se sente com o tacto é o que está dentro ou o que está fora do que se é. Por isso não sei o que sentia, se o teu toque, se o meu; não sei se sentia as tuas células vibrantes debaixo da minha mão, se sentia a minha mão nos teus dedos. Sentia a pele, mas não sabia a causalidade. Era talvez o toque simbiótico que sentia.
Mas com o correr inexorável dos segundos inevitáveis fui perdendo a sensibilidade desse toque até ser somente uma recordação esvaecida. Memória de um sonho bom. Enigmática verdade que desconhece a sua existência, aqueles foram momentos que eu queria ter guardado na caixinha das recordações perenes e ter comigo sempre que de ti me lembrasse, sempre que contigo estivesse e isso não fosse inconveniente. Debalde. Tal não é possível. Como eterno não retorno. Não se pode re-provar cada instante até lhe exaurir o sabor, esvaziar de todo o sentimento, aniquilar todo o excesso até nada daí restar. Se eu pudesse fazer isso, conheceria agora as tuas mãos melhor do que as minhas, saberia o teu cheiro num olhar e sentiria o teu sabor com os meus ouvidos. Mas só se isso fosse tudo. Só se isso fosse já a perfeição desconhecida. Só se, depois de o ser, ambos quiséssemos que o fosse ainda.
Assim, um dia, não me lembrarei daquele toque que senti sem o experimentarmos. Assim não saberei o teu cheiro nem sentirei o teu sabor. Seremos sempre a distância que nos separa de um sonho. Daquele sonho que, dentro da minha cabeça, não ousou revelar-se.

[Novembro de 2004]