Apontamentos fugazes 232

E ainda arte. E ainda Rui Chafes.

Quando se prova um chá bom, não se quer voltar a beber qualquer outro. O mesmo acontece com a arte, com a poesia, com a filosofia. É difícil aguentar coisas fraquinhas. 
 
Não se pode levantar o véu de uma obra de arte, deixá-la despida. Como as pessoas não sabem ver, estão sempre à espera de referentes e palavras, para tentarem lá ver o que lhe disserem que «é». 

(…) não há arte sem pensamento, porque sem este é apenas artesanato. (…) a arte, se o é, tem de questionar, inquietar, e perturbar o mundo. Como disse, a arte é para se «ficar mal». 

Rui Chafes, Sob a Pele - conversas com Sara Antónia Matos, Documenta - Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, 2015, pp. 71, 144 e 152

Apontamentos fugazes 231

Radical fanatismo de perfeição
Defendo que o artista tem de saber criar um espaço de pureza intransigente para o seu trabalho. A arte, quando é maior do que a vida, assusta. Nesse sentido, os grandes artistas são uns monstros, com o seu radical fanatismo de perfeição (dos sentimentos, das ideias, da execução) completamente separado da «razoabilidade da vida», acima de qualquer hipótese de negociação. As pessoas costumam chamar-lhes loucos, eu não chamo…

Rui Chafes, Sob a Pele - conversas com Sara Antónia Matos, Documenta - Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, 2015, p. 62

Poemas 54

Eye-diving

I want to dive into your eyes
to reach for your soul
and suck you out from within.
You, your faraway ideal,
brightening up my night
dimming my blinding day,
until you carry me
over the edge.

[Outubro de 2017]

Momentos de poesia 24

A Nona Elegia

(…)
Mas porque aqui estar muito é, e porque aparentemente de nós 
precisa tudo o que aqui está, este desvanecente que 
estranhamente nos diz respeito. A nós, os mais desvanecentes.
Uma vez cada, só uma vez. Uma vez e nunca mais. E nós também 
uma vez. Nunca de novo. Mas ter sido 
este uma vez, ainda que só uma vez
terrenamente ter sido parece não revogável.
(…)
(…) Ai, para a outra relação, 
dor, o que se leva? Não o contemplar, o aqui 
lentamente aprendido, e nenhum aqui acontecido. Nenhum.
Portanto, as dores. Portanto, sobretudo o ser pesado, 
portanto, do amor longa experiência, — portanto, 
Somente o indizível. (…)
(…)
Vê, vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro 
se tornam menos….. Existência para lá do contável 
brota-me no coração.

Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, tr. José Miranda Justo, Relógio d’Água, 2016

Recomendações 87

Sapiens - A brief history of humankind


É raro encontrar um livro que combine a clareza do discurso, a audácia das teses e a destreza das palavras. Mas é ainda mais raro encontrar alguém que não se deixe enredar nos pequenos fait-divers e na micro-análise. Por isso é particularmente bem-vindo um autor como Yuval Noah Harari, um historiador que escreve como um escritor, escava como um arqueólogo, analisa como um biólogo, não se coíbe das ingressões matemáticas como um economista e questiona como um filósofo. 

Pode ser importante compreender os desenvolvimentos geo-políticos no Médio Oriente na última década, mas é quando olhamos à escala de milhões de anos que conseguimos ver outros padrões. É pelo menos quando olhamos à escala de vários milénios que conseguimos ver padrões interessantes sobre o homo sapiens. E é isso que Harari nos traz, em Sapiens, com uma habilidade conectiva difícil de igualar. Nas, cerca de, 500 páginas que compõem o livro, Harari conta-nos uma história, a história do mundo, onde faz desenrolar a História em si. 

Mas talvez mais importante do que o que nos traz é onde Harari nos leva. E leva-nos, sem indecisão, às perguntas mais críticas da actualidade. Podia deixar-vos inúmeros excertos certeiros que vos fariam pensar “claro, por que é que eu nunca fiz esta conexão antes?” ou “exactamente, como é que as pessoas não percebem que quase tudo são realidades imaginadas?”, mas escolho deixar-vos com as perguntas do devir, porque é demasiado tarde para não sentirmos o estrépito do arauto da incerteza que nos chama do futuro.
«What we should take seriously is the idea that the next stage of history will include not only technological and organisational transformation, but also fundamental transformations in human consciousness and identity. And these could be transformations so fundamental that they will call the very term ‘human’ into question. (…)

If the curtain is indeed about to drop on the Sapiens history, we members of one of its final generations should devote some time to answering one last question: what do we want to become? This question, sometimes known as the Human Enhancement question, dwarfs the debates that currently preoccupy politicians, philosophers, scholars and ordinary people. (…)
And yet the great debates of history are important because at least the first generation of these gods would be shaped by the cultural ideas of their human designers.»  
«The only thing we can try to do is influence the direction scientists are taking. But since we might soon be able to engineer our desires too, the real question facing us is not ‘What do we want to become?’, but ‘What do we want to want?’ Those who are not spooked by this question probably haven't given it enough thought.» 

Yuval Noah Harari, Sapiens, A brief history of humankind, tr. autor, coadjuvado por John Purcell e Haim Watzman, Vintage Books, 2014 (p. 463 e p. 464)

Apontamentos fugazes 230

A permanência

A peste, é preciso dizê-lo, tirara a todos o poder do amor e até o da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e, para nós, já não havia senão instantes. 

Albert Camus, A Peste, 1ª ed., Livros do Brasil, 2016, p. 156

Poemas 53

Caminhos

De uma estrada sem início 
apareces sem chegares
és um vício,
um olhar perdido,
uma memória presente.
Sempre.
Uma folha caída
um riso inesperado
um raio certeiro
de fome incapaz.
Atrás
sem poderes encontrar 
uma porta que escancare
o arrependimento inconstante
de ver e voltar
para outro lugar
longe,
tão longe,
inacessível e calmo.
Um outro lugar
tão longe daqui.

[janeiro de 2017]