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Apontamentos fugazes 242

Gilgamesh

Como posso eu ficar silencioso, como posso descansar, quando Enkidu, que eu amei, se tornou pó, e também eu morrerei e me deitarei na terra?

Gilgamesh, tr. do inglês de Pedro Tamen, (Lisboa, Vega, 1999), p. 56

Homenagens 74

António Lobo Antunes e os olhos lacrimejantes 

Leio uma entrevista, em jeito de digressão, a António Lobo Antunes. As palavras dele mexem-me sempre nas células, desarranjam-nas. Incomodam-me como o andar à chuva do Alberto Caeiro. E, às vezes, como poucos o conseguem, desarma-me. As palavras dele. Expõem, com crueza, o que anda tão escondido, que ainda não se sabe e já existe. Desta vez, expôs o medo da vida que se esgota antes que o corpo se torne exangue. O medo que já não haja livros para escrever ainda antes de morrer. É um medo imenso. É uma tragédia. E molha-me os olhos com uma tristeza incomensurável. Mas enquanto ele ainda se lembra de dizer
Tenho medo é que isto [a necessidade de escrever livros] acabe antes de eu acabar.
o medo não tem ainda espaço para se materializar. E só interessam as minhas lágrimas felizes de compreensão.

Apontamentos fugazes 237

Vulnerabilidades
— E tu? — perguntou o anjo, e voltei a reconhecer a sua voz severa e muito distante, — nunca quiseste morrer? Porque é que pensas nisso? 
— Penso apenas que nos resta sempre essa saída! 
— Dás assim tão pouco valor à morte? Serve apenas para fugires de ti própria? 
— Não para fugir de mim, para escapar à vida. A vida dói-me. Até um estranho me pode fazer mal. Um obstáculo tão pequeno pode precipitar-me na queda. 
Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia, Tinta da China, 2008, p. 130

Apontamentos fugazes 233

Vislumbres de realidade

Wangel (observando-a): Ora pensa lá um bocado, querida. Ou… se calhar já não consegues lembrar-te de como ele era, quando esteve contigo no Bratthamer?
Ellida (reflectindo, fecha os olhos um instante): Não, muito nitidamente não consigo. Hoje não consigo. Não é estranho?
Wangel: Não, não é assim tão estranho. Apareceu-te à frente uma nova imagem, feita a partir da realidade. E esta imagem eclipsa a imagem antiga que tinhas, e por isso deixas de a poder ver.
Ellida: Achas, Wangel?
Wangel: Acho, e acho que também afasta as tuas fantasias doentias. Por isso, é bom que a realidade tenha aparecido.
Ellida: Bom! Dizes que é bom?
Wangel: Sim. Teres visto a realidade… pode bem ser a tua cura. 

Henrik Ibsen, A dama do mar em Peças Escolhidas - vol 2, Cotovia, 2008, 4º Acto, p. 194.

Apontamentos fugazes 229

Escrever

Sei que já o repeti mais do que o razoável, mas há qualquer coisa de único quando se escreve. Há um estrépito de tambores decisivos. Que preparam a chegada de algo mais verdadeiro. Da essência que, no momento, se perpetua para sempre. 
E há dias especiais em que, em êxtase, se escreve assim. Há dias em que, em catarse, me escrevo assim. Dias como o de hoje.

Recomendações 82

Brainpickings

Brainpickings, a wonderful website, written by Maria Popova, which touches upon a variety of interesting topics, ranging from philosophy to neuroscience.

Homenagens 65

The hours, by Stephen Daldry


Gostei tanto deste filme…

Pensamentos líquidos 111


Anthony Bourdain and Lobo Antunes



The ones who know me, know well I am not nationalistic. I just think there are things which matter and nations are not one of those things. But nationalism or regionalism are used as proxies to find patterns. And that is difficult to fight against. But this is actually not what I want to talk about. This is only the disclaimer to justify that the reason why I am posting this post is not a biased nationalistic one.

So, I like Anthony Bourdain and his shows. They’re fun and it is interesting to get to know cultures through their food. So, just for that, I could suggest this one about Lisbon. But then, then, we have the food. And even though I would not really eat the pork sandwiches or (no longer) the blood sausages, there is the food. There is the sea food and the delicatessen and, of course, the “ginginha”.


[Anthony Bourdain in Lisbon]
But I have other reasons to write this post. And one reason is so overwhelming that I feel almost embarrassed. One of Anthony’s guests is António Lobo Antunes himself. And I apologise to Lobo Antunes for the boldness here and I know he’d call me silly should he know about this (not the first time I do it though), but he’s very much my writer. One of my all time favourites. Probably my contemporaneous favourite writer. So, yes, I definitely had to post this one. It’s not often that one sees Lobo Antunes and I feel I need to praise Bourdain’s team to get him to talk to the world. It’s not often that he talks to the world.
As I wrote, I am not nationalistic. There are lots of things in which I am not very “Portuguese”. But living abroad made me understand that there are plenty of things that I was not appreciating enough and that are, in fact, just delicious. And I miss them. The music, the music scene, the restaurants, the other arts, the non-stiffness of people. But of course, now that I am coming to an end of this post, there is something I need to say about Portuguese writers. My favourite writer was Portuguese, my favourite poet the same, and no news with my favourite contemporaneous writer, here in the Bourdain show. Yes, maybe this Portuguese sad soul doomed writer (or musician) is really true. But either true or false, it can’t get better than that. And for that I am so thankful.

Apontamentos fugazes 204

The writer, The All and the injustice of being human

«Egor was speaking again: ‘But most people – or let us say, most writers – will never reach The All. They will never even become geniuses. They will never become anything. I… I am one of them. But at least I know this and try to express this powerlessness through everything I write. I know that nothing can be said, that no one expects you to say anything, but that you must say it. I know you must somehow go against the injustice of being human and being unable to reach The All’



Mircea Cărtărescu, «Nostalgia; REM», New Directions 2005, p. 252

Pensamentos líquidos 109

Os 100 melhores livros de sempre

Quando era mais nova, sentia por vezes uma angústia enorme ao consciencializar que, por escassez de tempo, nunca poderia ler todos os livros que quisesse. A angústia foi-se dissipando, mas penso frequentemente que posso estar a deixar escapar livros importantes. E, por isso, de tempos a tempos, olho novamente para a lista de prémios Nobel ou pesquiso listas de melhores livros de sempre. Acabo, quase sempre, ligeiramente desiludida porque as listas não me agradam.


Todavia, não há muito tempo, encontrei uma lista dos 100 melhores livros de sempre, elaborada pelo The Guardiam em 2002.


Esta lista é relativamente especial porque não é limitada em períodos ou línguas e foi preparada a partir da opinião de escritores de todo o mundo. E, numa perspectiva mais egoísta, porque contém vários autores e títulos que estariam na minha lista pessoal. Desde logo, tem vários romances de Dostoyevsky, de entre os quais “O idiota”, um dos meus livros de eleição. De entre os russos, apresenta ainda Tolstoy, Gogol e Tchékov. Não negligencia Ulisses, de James Joyce, por muitos considerado o melhor livro de todos os tempos e uma lacuna pessoal. Ainda Stendhal, Proust, Camus, entre outros franceses; Jorge Luis Borges, Gabriel Garcia Marquez; Edgar Allen Poe, Hemingway, Walt Whitman; Thomas Mann; Kafka; Shakespeare; Cervantes; Homero, Virgilio…


Sim, muitos destes nomes chamam muito a atenção. Chamam muito também a minha atenção. Mas talvez o que tornou a lista ainda mais especial, foi um nome em particular, que não costuma constar de listas assim. E esse nome é Pessoa, um dos meus poetas preferidos. A obra em causa é o Livro do Desassossego, na verdade assinado pelo semi-heterónimo Bernardo Soares, e segundo alguns, parcialmente escrito por Pessoa ortónimo. Infelizmente, nunca escrevi realmente sobre o Livro do Desassossego, nada mais do que isto. E culpo-me.

Mas, acima de tudo, o importante é que Fernando Pessoa está na lista. Ele foi/é um escritor fantástico e vê-lo numa listas destas deixa-me regozijar de contentamento.


O reconhecimento deveria ser só uma justa consequência.

Apontamentos fugazes 198

Literature

«But what can a man who wrote literature all his life do? How can he escape the arcana of style? How, with what instruments, can you cloak the page with a pure confession, freed from the prison cell of artistic convention? Let me collect myself and have the courage to admit it: you can’t. I’ve known this from the beginning but, in my cornered animal cunning, I concealed my game, my stake, my bet from your gaze. Because, finally, I staked my life on literature. (…) But there is a place in the world where the impossible is possible, namely in fiction, that is, literature. (…) But then I, too, am a character, and I can’t stop myself from bursting with joy. Because characters never die, they live each time their world is “read”. (…) Thus, my wager and my hope.»


Mircea Cărtărescu, «Nostalgia», New Directions 2005, p. 22

Apontamentos fugazes 196

Absurdo de Camus, escrito por Camus II

«”Pois bem, morrerei.” Mais cedo do que os outros, evidentemente. Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que morrer aos trinta ou aos setenta anos tanto faz, pois, em qualquer dos casos, outros homens e outras mulheres viverão, e isso durante milhares de anos. No fim de contas, isto era claro como água. Hoje ou daqui a vinte anos, era à mesma eu quem morria. Neste momento, o que me incomodava um pouco no meu raciocínio era esse frémito terrível que me percorria, ao pensar nesses vinte anos para viver. O que tinha a fazer era abafar essa sensação, imaginando o que seriam os meus pensamentos daqui a vinte anos, quando chegasse, então, à hora da morte. Desde o momento que se morre, é evidente que não importa como e quando.»

Albert Camus, «O Estrangeiro», Livros do Brasil 2006, pp. 113

Apontamentos fugazes 195

Absurdo de Camus, escrito por Camus I

«Mas ele interrompeu-me e exortou-me, pela última vez, olhando-me de alto e perguntando-me se eu acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se indignadamente. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os que não O queriam ver. A convicção dele era essa e, se um dia duvidasse, a vida deixaria de ter sentido. “Quer o senhor”, exclamou, “que a minha vida deixe de ter sentido?” Eu achava que não tinha nada com isso e disse-lho. Mas, através da mesa, estendeu a imagem de Cristo e exclamou: “Eu sou cristão. Peço-Lhe perdão pelos teus pecados. Como podes não acreditar que Ele sofreu por ti?” Reparei que me estava a tratar por tu… mas estava farto. O calor apertava cada vez mais. Como sempre que me quero desembaraçar de alguém que já nem estou a ouvir, fiz menção de aprovar. Com grande surpresa minha, tomou um ar de triunfo: “Vês, vês!”, dizia ele. “Não é verdade que crês e que te vais confiar a Ele?” É claro que, uma vez mais, disse que não. Voltou a deixar-se cair na cadeira.»


Albert Camus, «O Estrangeiro», Livros do Brasil 2006, pp. 79

Apontamentos fugazes 194

Absurdo de Camus, escrito por Sartre

«O que é então o absurdo como estado de facto, como dado original? Nada menos do que a relação do homem com o mundo. O absurdo fundamental manifesta, antes de tudo, um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem à unidade e o dualismo intransponível do espírito e da natureza, entre o impulso do homem em direcção ao eterno e o carácter finito da sua existência, entre a “preocupação” que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços. A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo.
(…)
A sua originalidade
[de Camus] é, a seus olhos, ir ao fim das próprias ideias: para ele não se trata, com efeito, de coleccionar máximas pessimistas. Certo é que o absurdo não está no homem, nem no mundo, se os tomamos separadamente; mas, como é o carácter essencial do homem o “estar-no-mundo”, o absurdo é, em suma, unitário com a condição humana.
(…)
Então, se sabemos recusar o socorro enganador das religiões ou das filosofias da existência, temos algumas evidências essenciais: o mundo é um caos, (…) não há amanhã, visto que se morre.
(…)
Mas não é isto somente: é uma paixão do absurdo. O homem absurdo não se suicidará: quer viver, sem abdicar de qualquer das suas certezas, sem dia seguinte, sem esperança, sem ilusões e também sem resignação. O homem absurdo afirma-se na revolta. Fixa a morte com uma atenção apaixonada e esta fascinação liberta-o: conhece a “divina disponibilidade” do condenado à morte. Tudo é permitido, visto que Deus não existe e visto que se morre. Todas as experiências são equivalentes, convém somente adquirir a maior quantidade possível delas.»


Jean-Paul Sartre, prefácio de «O Estrangeiro» de Camus, Livros do Brasil 2006, pp. 8-12

Apontamentos fugazes 188

Excitação

Hoje, aquela excitação de olhos risonhos, apareceu novamente. E com ela a comoção da escrita e da existência do escritor. Obrigada, companheiros de casa. a

Pensamentos líquidos 108

Vergílio Ferreira, espólio e o primeiro post do ano

Leio Vergílio Ferreira novamente, como que a propósito da edição recente de obras do seu espólio. Como se motivos fossem necessários…
Leio Vergílio novamente e, como sempre, algo muito especial acontece. Tão especial que me culpo das palavras que utilizo para o dizer. Talvez só as dele pudessem dizer o eu quero. E então pareço querer arrancar verdades de mim, aqui, só para as dizer sobre ele.
Ora, a importância das coisas depende do sujeito. As minhas preocupações importantes parecem ter sido já todas pensadas, trabalhadas, resolvidas por V.
Tento escrever, com esta comoção de quem procura verdades e as encontra nas palavras de outrem. Verdades. Procura. Partilha de interesses semelhantes. É isto que V. me dá sem o saber. É nesta ‘arte-verdade’ que V. já tinha pensado, que encontro as respostas que procuro; as perguntas que procuro. São verdades individuais, inexoráveis, com uma força impossível de igualar. Para mim. Compreensão.
Disseram-me, como se eu não soubesse, que esta minha ‘arte-verdade’ é a minha religião. É-o, na perspectiva de ser maior; mas só aí. Em tudo o resto é mais genuína. É uma ‘arte-verdade’ individual, partilhada através da dúvida e por cumplicidade, nunca por dogma. É uma procura, mais do que uma resposta. E ironicamente é humana. O que a torna tão mais notável porque existe sem hipóteses.
Para mim é, talvez, a ‘arte-filosofia’. Porventura por isso nunca compreendi a fotografia como forma de arte. Porque a minha arte é muito mais do que um exercício estético de técnica. E por isso a sua subjectividade.
A obra de arte é tão mais especial quanto mais verdade trouxer. E V. traz-me muita.

Aproveito para parabenizar e agradecer à equipa Vergílio Ferreira pelo trabalho ao longo dos anos e, especialmente, a Fernanda Irene Fonseca e Hélder Godinho pela publicação destas obras do seu espólio. É muito apreciado.

Nos próximos tempos trar-vos-ei excertos de Promessa e de um Diário Inédito.
a

Apontamentos fugazes 180

Sobre as verdades

«Existe o que quero dizer e existe a minha voz. Nem sempre o tom da minha voz corresponde ao que quero dizer e, mesmo assim, molda-o tanto como as palavras que escolho. Sou menos dono da minha própria voz do que destas palavras, indexadas em dicionários que já estavam impressos antes de eu nascer. (…) O que quero dizer também é como este livro: mundo subjectivo, existente e inexistente, sugerido pelo significado das palavras.»

«Ao longo da escrita deste livro que estás a ler, tenho sentido que gostaria de poder fazer o mesmo com o que eu sei. No campo, num fim de tarde, estender esse conhecimento no ar, em pazadas, e assim separar aquilo que apenas presumo daquilo que foi mesmo. Por mais efeito que possa ter aquilo que presumo, é aquilo que foi mesmo que chega ao lagar, que alimenta. Aquilo que foi mesmo não é necessariamente aquilo que aconteceu. É algo muito mais importante, é a verdade. Sim, já sei, o que é a verdade? Sim, já sei, não sei.
Peço-te desculpa por este comentário, folhinha. Sem tristeza, por favor. Não o leves a mal, folha de oliveira. Precisei de fazê-lo para, depois, ser capaz de o esquecer.»

José Luís Peixoto, «Livro», Quetzal, pp. 235 e 241

Apontamentos fugazes 179

Sobre a importância da literatura

Obrigada.

«Mas tu ainda estás aí, olá, eu ainda estou aqui e não poderia ir-me embora sem te agradecer. Aí e aqui ainda é o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objectos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. Até lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relógios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, este tempo encadernado. As tuas mãos seguram este livro e, no entanto, nas tuas mãos, é manhã. Nas tuas mãos, a minha mãe, o Ilídio e o Cosme estão no andar de cima, ouve-se os passos, as cadeiras a serem arrastadas. Nas tuas mãos a vila descansa e Paris é tão longe. Às vezes, penso em ti sem te dizer. Mesmo esses pensamentos invisíveis estão agora nas tuas mãos. Seguras o meu nome. Este livro que estás a ler e que estou a escrever, onde estamos, é exactamente o mesmo que a minha mãe me pousou nas mãos, como na primeira frase. Também esse livro era este. O início também é agora. O amanhecer apenas se distingue do anoitecer por aquilo que o antecedeu e pela sucessão que lhe imaginamos, o antes e o depois. Agradeço-te por teres aceitado que este livro se transformasse em ti e pela generosidade de te teres transformado nele, agradeço-te pela claridade que entra por esta janela e por tudo aquilo que me constitui, agradeço-te por me teres deixado existir, agradeço-te por me teres trazido à última página e por seguires comigo até à última palavra. Sim, tu e eu sabemos, isto: . Insignificância, pedaço de nada, interior da letra ó. Mas isso será daqui a pouco. Por enquanto, aproveitemos, ainda estamos aqui.»

José Luís Peixoto, «Livro», Quetzal, pp. 262, 263

É isto. Percebem agora?
a

Apontamentos fugazes 165

Coisas agradáveis na vida

«como pudeste imaginar que te entregava o que ganhei a roer ossos, o notário decidiu-se por fim chamando o ajudante, a quem prometi o lameiro também, para servir de testemunha e aplicou os carimbos comigo a invejá-lo porque se existem três coisas agradáveis na vida são cortar folhas pelo picotado, esmagar entre o polegar e o indicador num estalinho cujo som me exalta as bolhas de plástico com que se protegem os cálices nos caixotes e o acto de carimbar, volúpia sublime por se decompor em diversas fases, primeira humedecer o carimbo na almofada de tinta, segunda esmurrá-lo contra o papel numa energia feroz e por último a contemplação, ia escrever feliz e escrevo feliz, a contemplação feliz da obra acabada, o pedaço de carne que sobrar depois das hipotecas e das dívidas(…)»


«Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar», António Lobo Antunes, D. Quixote, pp. 37
a