Apontamentos fugazes 179

Sobre a importância da literatura

Obrigada.

«Mas tu ainda estás aí, olá, eu ainda estou aqui e não poderia ir-me embora sem te agradecer. Aí e aqui ainda é o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objectos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. Até lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relógios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, este tempo encadernado. As tuas mãos seguram este livro e, no entanto, nas tuas mãos, é manhã. Nas tuas mãos, a minha mãe, o Ilídio e o Cosme estão no andar de cima, ouve-se os passos, as cadeiras a serem arrastadas. Nas tuas mãos a vila descansa e Paris é tão longe. Às vezes, penso em ti sem te dizer. Mesmo esses pensamentos invisíveis estão agora nas tuas mãos. Seguras o meu nome. Este livro que estás a ler e que estou a escrever, onde estamos, é exactamente o mesmo que a minha mãe me pousou nas mãos, como na primeira frase. Também esse livro era este. O início também é agora. O amanhecer apenas se distingue do anoitecer por aquilo que o antecedeu e pela sucessão que lhe imaginamos, o antes e o depois. Agradeço-te por teres aceitado que este livro se transformasse em ti e pela generosidade de te teres transformado nele, agradeço-te pela claridade que entra por esta janela e por tudo aquilo que me constitui, agradeço-te por me teres deixado existir, agradeço-te por me teres trazido à última página e por seguires comigo até à última palavra. Sim, tu e eu sabemos, isto: . Insignificância, pedaço de nada, interior da letra ó. Mas isso será daqui a pouco. Por enquanto, aproveitemos, ainda estamos aqui.»

José Luís Peixoto, «Livro», Quetzal, pp. 262, 263

É isto. Percebem agora?
a

Sem comentários: