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Contos 24

Ciclo M – O cheiro

Foi o cheiro perdido no ar anónimo que te trouxe de volta a mim. Cheiro indecente. Trouxe a tua pele branca, a textura nem sempre suave. Trouxe o toque. O toque, o nosso maior meio de comunicação que já não há. Trouxe-te a ti. Cheiro indecente. Trouxe a ponta dos meus dedos nos teus braços e as lágrimas nas comportas dos meus olhos. Eu era só há três minutos de paz. Há talvez durante um dia uma hora em que não me destróis. E o cheiro indecente logrou-me os três minutes de paz. O resto do dia com ele. Agora existes em todo o lado: és a minha omnipresença dolorosa. És o peso que me lança ao chão e me puxa até eu desistir. Já debaixo, submersa, és a corrente que me mantém lá inerte, só com as lágrimas nas comportas dos meus olhos. Tenho pálpebras de ferro. Cheiro indecente. É um cheiro invasivo que me abre buracos na carne. Trouxe-nos e já não existimos. Eu sou uma marioneta idiota e tu…? É o cheiro que me diz o que já não tenho. É o cheiro indecente que passa diante dos meus olhos e me mostra o que nunca mais vou poder ter.

Hoje foi este cheiro: 7.23 da manhã. Todos os dias uma coisa diferente. Este cheiro que te trouxe e te espetou no meu corpo. Com a intensidade do que isto era. Intensidade ubíqua que sai do meu estômago. E sangra. Cheiro indecente que ignora os meus apelos de misericórdia. Estocada de hoje.

Apaga-te de mim.
a

Contos 21

Ciclo M - Objectivo forjado

Quando ele se debruçou inevitavelmente para a frente do carro daquela mulher, tinha a esperança secreta? de finalmente morrer naquele dia. O sofrimento havia deixado de ser suportável, ou nunca o fora? Não era muito corajoso envolver outra pessoa, era só um modo, uma desculpa, um instrumento de morte, mesmo que isso implicasse afectar tão inexoravelmente a vida de alguém, mesmo que isso criasse pesadelos constantes na vida de alguém que não queria morrer. Mesmo assim, naquele segundo, morrer às mãos de alguém, foi a única solução possível. Foi a única solução que ele estava disposto a assumir, cobarde consciente e consciencioso pelos que conhecia, os que sofreriam mais se o vissem esvaído em sangue após um tiro finalmente certeiro ou bamboleante numa corda enlaçada ao pescoço…
Quando o carro dela chegava tão perto de um homem que não medira os passos, o susto imediato não compreendeu o decisivo que poderia ter sido; a adrenalina que empurrou o pé direito do acelerador até ao travão em segundos instantâneos era alheia ao momento que separa a vida da morte. Ela não soube como parou o carro antes de bater naquele homem, foi uma reacção instintiva que salvou aquela vida, pensou… não foi uma condução particularmente atenta ou virtuosa, foi um reflexo feliz.
O momento em que os seus olhares se cruzaram pôs todavia em dúvida todas estas reflexões. Ela, apesar da escuridão de uma noite brumosa, viu nos olhos dele encandeados pelos faróis do seu carro uma necessidade não concretizada, uma infelicidade, uma… desilusão. Uma oportunidade não aproveitada. Ele viu nos olhos dela o espanto de ter reconhecido que a sua proeza admirável tinha provocado uma tristeza maior do que a sua vida.
Nos caminhos para casa pensaram se tudo tivesse sido diferente. Ele tentou imaginar-se morto e sentiu pena daquela mulher que sofreria por dias infinitos uma morte não evitada. Ela tentou imaginar que o tinha matado, como ele parecia querer, e pensou quão egoísta estaria a ser por desejar não o ter matado. Pensou como conseguiria suportar aquela morte se o tivesse feito, ainda que nunca a pudesse vir a saber intencional.
No final da noite, ela desejou havê-lo matado e ele ficou contente por ela ter evitado o acidente.

Alinhar à direita[Março de 2006]

Contos 20

Ciclo M - Cigarro

Acendes mais um cigarro e sorris timidamente para o vazio que te coíbe. Olhas a escuridão que te cerca e finges que não percebes que todos olham para ti. Mas a presença deles pressiona o teu corpo e achas que não mais vais conseguir respirar.
Estás só e o fumo do cigarro percorre o teu corpo sem saber que te destrói. O ar que respiras é insuficiente para as necessidades absurdas que tens. Essas pessoas roubam o teu oxigénio e tu estás cada vez mais esmagado pelos seus olhares. E finges. Finges que te são indiferentes. Finges que a tua respiração é natural e natural é o movimento de levares o cigarro à boca. Finges viver. E finges tanto que já finges sem fingimento.
Mas subitamente alguém te dirige uma palavra. E tu deixas de estar só, ainda que finjas não ouvir. O copo alto, à tua frente, quase cheio de um líquido amarelado finge também que não conhece a tua boca, o teu olhar… esse olhar que não quer admitir que alguém te chama. Tens medo que alguém encontre os teus olhos com lágrimas, só que os teus olhos já não têm ninguém atrás. És só um boneco que fuma.
O teu nome ressoa no espaço perdido. A voz está cada vez mais perto de ti e tu olhas para esse copo conivente, tão discreto quanto tu, que solidário não te olha.
E enquanto a voz se aproxima, na escuridão densa, tu engoles um pouco daquele líquido amarelo, de sabor amargo, que te aquece o esófago. Fumas mais, aquele cigarro cansado que desistiu de te compreender e esperas o inevitável que queres adiar sem força suficiente.
És um fraco e sabe-lo. Estás desconfortável nessa posição, aparentemente relaxada e não tens disposição para te mexer. Controlas a necessidade que não tens de te virar para a voz sem rosto que te chama. Foi um impulso ao qual resististe e esperas como se nada mais houvesse a fazer.
Ela senta-se à tua frente e sorri. Estás cercado, sem saída. Pensas em tudo o que podias ter feito e acabaste por não fazer por comodismo. Pensas em como podias não estar ali. E então teria sido ela a esperar-te e só tu saberias que não irias encontrá-la. Ela esperar-te-ia pela primeira vez e tu estarias pela primeira vez a controlar a vossa relação.
Mas enquanto ela olha directamente para ti, tu já não tens certeza do motivo que te levou ali. A fumar numa cadeira desconfortável e a engolir uma bebida de que não gostas. Ela seca os teus fluidos de coragem até sentires as articulações rangerem de dor; crava setas de esperança no teu corpo frágil e faz-te sorrir.
Desistes de achar que és mais forte do que ela. Não és. Ela chegou e tu já nem pensas no que tinhas planeado. Mas tudo começa a acontecer, mesmo sem fazeres o esforço que pensavas ser necessário. Agarras-lhe a mão e sentes-lhe o pulso; sentes a vida dela passar entre os teus dois dedos. Já não sentes o peso da traição, já não sentes o sofrimento que te corta a respiração, já não és tu. Voltas à realidade quando ela puxa bruscamente o braço e te pergunta sem brincadeira se estás a gozar com ela. Tu sorris com deleite, mas não dizes nada.
Tinhas pensado várias vezes em tudo o que deverias fazer, mas agora, ao vê-la, não tens certeza se serás capaz. E novamente os teus actos parecem ter vontade própria. Com a tua mão esquerda agarras-lhe o braço direito gentilmente. A tua mão direita entra no teu bolso das calças e sente aquele objecto contundente que carinhosamente transportas. Nem sequer és muito rápido a tirá-lo do bolso, mas… por quê matá-la se és tu quem deve morrer? E aí, sem seguires o plano que tinhas delineado durante dias, olhas para ela, sorrindo, trazes o canivete acima do nível da mesa e inevitavelmente cortas o teu pulso esquerdo, mas não fazes um corte transversal como aqueles que não querem morrer, mas só chamar atenções; fazes um corte longitudinal e profundo e sentes-te esvair em sangue. Ela está horrorizada e não se consegue mexer. Não fala, não grita e tu vês uma lágrima brilhar na sua face. Ainda tentas sorrir mas estás a desvanecer.
E subitamente sentes uma dor aguada na face esquerda. Esforças-te por abrir os olhos mas não percebes que sentido isso fará. Mas quando o fazes não vês o céu, mas a cara dela. Imaginavas-te caído no chão, sem vida, mas continuas sentado e ela parece zangada. Zangada e preocupada.
Agora, que recuperas o sentido de realidade física, percebes que não largaste o braço dela. Aliás, o braço dela está hirto e tu percebes a força que lhe imprimes. Ela olha-te indignada. Tu… ris como louco.

[Setembro de 2003]