Sentimento de si
Quando eu era pequenina e passeava com os meus pais. Viajávamos de carro e eu pensava as pessoas que via. Acontecia sempre que passeávamos de carro. Nos fins-de-semana. Nas férias. Nas viagens.
E aí eu sabia que essas pessoas existiam. Existiam. Não como nos outros momentos eu sabia que elas existiam. Não como uma planta existe. Elas existiam e sabiam que existiam. E aí. Só aí eu reconhecia a plenitude da existência. Aquilo a que o António Damásio chama “sentimento de si”.
Essas pessoas também viviam uma vida. Podia ser mais ou menos delas, mas era a vida de cada uma. Essas pessoas também pensavam. Essas pessoas, talvez, quando me vissem encostada ao vidro da porta esquerda traseira, talvez, pensassem naquilo que eu pensava. Que eu também era um ser humano e que sabia que existia.
Que fascínio pode ser maior? Saber que não sou a única. Porque eu sabia que os meus pais existiam. As outras pessoas que eu conhecia existiam. Mas eu nunca tinha visto as pessoas que via naquelas viagens de carro. E elas também existiam. E as outras pessoas que eu nunca tinha visto, nem nunca iria ver também existiam. E como isso é fantástico, verdadeiramente genial…
Quando eu era pequenina e passeava com os meus pais. Viajávamos de carro e eu pensava as pessoas que via. E foi nessas viagens mágicas que eu percebi os seres humanos. Percebi que todos os seres humanos existiam. Existiam mesmo que eu não os conhecesse. Existiam.
Sei agora que Vergílio Ferreira lhes chamava o “eu” dentro do “tu”. Sim, foi isso que descobri. Quando era pequenina. Sim, e isso é fascinante.
Maio de 2004
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