Exposição: pensamentos sobre activismo (social) e qualidade de vida individual
Estava a ver o Milk e comecei a ter um conjunto de pensamentos na minha cabeça que precisava de ser escrito. Um conjunto de pensamentos emaranhado que, no entanto, apresentava convicções muito fortes. E quando reparei tinha páginas de parágrafos desconexos, cheios de intensidade, mas pouca coerência. A incoerência devia-se provavelmente a duas coisas: primeiro, não conseguia parar de chorar enquanto escrevia e segundo, a minha mente não funciona linearmente.
Tentei uma depuração, mas precisava tanto de gritar estas ideias. Tanto. Se escrevesse este texto há alguns (poucos) anos atrás, escrevê-lo-ia certamente de um ponto de vista diferente. Mas não hoje, não agora, quando as minhas ideias estão mais inseguras, mas algumas das minhas convicções mais fortes do que nunca.
E por isso vou aproveitar para dedicar este texto a algumas pessoas. Primeiro e acima de tudo, às pessoas que nunca abdicaram de mim por nenhum bem maior ou por egoísmo e segundo às pessoas que conheço e para quem sei que a luta do Milk foi importante.
Começando pelo Milk. A jeito de “sinopsear” o filme, Harvey Milk é um activista dos direitos dos homossexuais e torna-se político, tendo os direitos dos homossexuais como a prioridade da sua “agenda”. E é assassinado. Enquanto Milk luta pela defesa dos direitos dos homossexuais negligencia a relação com o seu companheiro. Destrói a relação com a pessoa de quem gosta, que por acaso é um homem. E se, por um lado, a sua luta é tão meritória que não devia sequer existir, por outro, é tão triste que simultaneamente inviabilize a possibilidade de usufruir de eventuais ganhos dessa luta. A luta social que encetou prejudicou-o e prejudicou a outra pessoa que mais interesse também teria nessa luta – o seu companheiro 1.
Porquanto Milk não quis ser assassinado e não “escolheu” sê-lo, escolheu continuar a luta em favor da sociedade em detrimento de escolher o seu companheiro. E isto é uma merda. Muito sinceramente, da maneira como eu agora vejo isto, ele tinha as prioridades trocadas. E, no entanto, para as outras pessoas que beneficiaram da sua luta, do seu comportamento, a vida melhorou. E, no entanto, eu admiro a sua luta tremendamente. Mas só porque não sou o Scotty.
Em geral, viver uma vida é uma coisa complicada e difícil. Pelo menos quando se pensa um bocadinho nela. E tudo piora muito quando as pessoas de quem se gosta abdicam de nós por um “bem maior”. Pois bem, a minha tese é que não há bem maior.
A “sociedade” impacta a vida de cada indivíduo de maneiras que, por vezes, parecem indiciar que não é sequer composta também por esses indivíduos. De facto, em “sociedades ideais”, não deveria haver impactos em liberdades individuais pela força “externa” da sociedade. Como não deveria haver violações de direitos humanos. Mas há. E são estes impactos que requerem que se continue a lutar. A lutar por direitos e a lutar por liberdades. E portanto a promover este activismo social.
Mas pelo bem de cada indivíduo activista e de todos os que lhes são próximos, não se deve achar que há um bem maior que merece todos os sacrifícios. A maior parte dos activistas de que me lembro, mesmo garantindo a melhoria de condições de vida para alguns indivíduos, tiveram a sua vida pessoal arruinada. E não me refiro só aos que foram assassinados.
Por isso e só para evitar equívocos: eu não estou a dizer que não se deve lutar. Pelo contrário: deve lutar-se até ao limite possível, mas não se deve chegar à “martirização” da luta ou da causa, mesmo quando válida. E por isso é que é importante ter grupos civis que funcionem como lobbies ao poder político. Por isso é que é importante garantir que as pessoas têm liberdade para promover essa luta. Por isso é que é importante que todas as pessoas que acreditam que algumas coisas estão mal façam qualquer coisa. Porque se fizerem, haverá menos mártires não intencionais.
A garantia da prevalência de direitos humanos e de liberdades individuais é tão importante como a garantia do respeito pela vida. E isto porque viver uma vida é muito mais do que sobrevivê-la. É saber que se pode gostar de um rapaz ou de uma rapariga e não haver nada de errado nisso. É saber que não há KKKs a incendiarem casas e a matarem pessoas. É saber que um muçulmano aceita um cristão, um cristão aceita um muçulmano e que ambos aceitam ateus.
De cada vez que, em Portugal, me encontro com amigos homossexuais em sítios públicos e percebo que não se sentem sequer confortáveis em ter manifestações normais de afecto, tenho vontade de bater às pessoas que estão por perto. Porque não devia ser assim. E por isto, sim, eu devo lutar. Todos vocês devem lutar. Quando uma coisa ridícula como casar não é permitido a alguém só pelo sexo das pessoas; sim, deve lutar-se.
Esta é a minha pequena tentativa activista. Um dos meus gritos como os banners ali na barra de lado. Mas é também a minha tentativa de dizer que o activismo só vale a pena porquanto permite viver melhor. E ser morto por isso (à excepção de quem, legitimamente, acha que essa também é uma via) em geral não vale a pena.
Porque se o activismo normalmente tem inerente características sociais (pelo menos no que eu me quero referir aqui), é sempre verdade que a sociedade é composta por indivíduos. E por muito que às vezes me digam que o todo é maior do que a soma das partes, eu vou continuar a achar que o todo será sempre menor do que um indivíduo que seja. E eu não acho que haja um bem maior na sociedade, per se. Mas há um bem muito maior em cada indivíduo de cada sociedade.
Por isso deixa-me muito contente sempre que cada pessoa dentro “da sociedade” pode fazer algo que a deixa um bocadinho, um bocadinho que seja, mais feliz por causa de um objectivo atingido na luta pela garantia de direitos humanos e de liberdades individuais.
E ainda assim. Há uma angústia terrível que não me abandona. Há uma angústia terrível porque penso em todos os activistas mortos. Em todos os activistas que, ainda que garantindo a melhoria de condições de vida para alguns indivíduos, tiveram a sua vida pessoal arruinada.
Choro. Choro pela injustiça. De todos os casos que aconteceram. E porque sei que vai continuar a acontecer.
1 Para garantir a veracidade das coisas, note-se que esta visão só é abordada no filme na segunda relação de Milk. E eu escrevi o texto antes de ver essa parte do filme, portanto refiro-me à primeira relação retratada no filme.
Estava a ver o Milk e comecei a ter um conjunto de pensamentos na minha cabeça que precisava de ser escrito. Um conjunto de pensamentos emaranhado que, no entanto, apresentava convicções muito fortes. E quando reparei tinha páginas de parágrafos desconexos, cheios de intensidade, mas pouca coerência. A incoerência devia-se provavelmente a duas coisas: primeiro, não conseguia parar de chorar enquanto escrevia e segundo, a minha mente não funciona linearmente.
Tentei uma depuração, mas precisava tanto de gritar estas ideias. Tanto. Se escrevesse este texto há alguns (poucos) anos atrás, escrevê-lo-ia certamente de um ponto de vista diferente. Mas não hoje, não agora, quando as minhas ideias estão mais inseguras, mas algumas das minhas convicções mais fortes do que nunca.
E por isso vou aproveitar para dedicar este texto a algumas pessoas. Primeiro e acima de tudo, às pessoas que nunca abdicaram de mim por nenhum bem maior ou por egoísmo e segundo às pessoas que conheço e para quem sei que a luta do Milk foi importante.
Começando pelo Milk. A jeito de “sinopsear” o filme, Harvey Milk é um activista dos direitos dos homossexuais e torna-se político, tendo os direitos dos homossexuais como a prioridade da sua “agenda”. E é assassinado. Enquanto Milk luta pela defesa dos direitos dos homossexuais negligencia a relação com o seu companheiro. Destrói a relação com a pessoa de quem gosta, que por acaso é um homem. E se, por um lado, a sua luta é tão meritória que não devia sequer existir, por outro, é tão triste que simultaneamente inviabilize a possibilidade de usufruir de eventuais ganhos dessa luta. A luta social que encetou prejudicou-o e prejudicou a outra pessoa que mais interesse também teria nessa luta – o seu companheiro 1.
Porquanto Milk não quis ser assassinado e não “escolheu” sê-lo, escolheu continuar a luta em favor da sociedade em detrimento de escolher o seu companheiro. E isto é uma merda. Muito sinceramente, da maneira como eu agora vejo isto, ele tinha as prioridades trocadas. E, no entanto, para as outras pessoas que beneficiaram da sua luta, do seu comportamento, a vida melhorou. E, no entanto, eu admiro a sua luta tremendamente. Mas só porque não sou o Scotty.
Em geral, viver uma vida é uma coisa complicada e difícil. Pelo menos quando se pensa um bocadinho nela. E tudo piora muito quando as pessoas de quem se gosta abdicam de nós por um “bem maior”. Pois bem, a minha tese é que não há bem maior.
A “sociedade” impacta a vida de cada indivíduo de maneiras que, por vezes, parecem indiciar que não é sequer composta também por esses indivíduos. De facto, em “sociedades ideais”, não deveria haver impactos em liberdades individuais pela força “externa” da sociedade. Como não deveria haver violações de direitos humanos. Mas há. E são estes impactos que requerem que se continue a lutar. A lutar por direitos e a lutar por liberdades. E portanto a promover este activismo social.
Mas pelo bem de cada indivíduo activista e de todos os que lhes são próximos, não se deve achar que há um bem maior que merece todos os sacrifícios. A maior parte dos activistas de que me lembro, mesmo garantindo a melhoria de condições de vida para alguns indivíduos, tiveram a sua vida pessoal arruinada. E não me refiro só aos que foram assassinados.
Por isso e só para evitar equívocos: eu não estou a dizer que não se deve lutar. Pelo contrário: deve lutar-se até ao limite possível, mas não se deve chegar à “martirização” da luta ou da causa, mesmo quando válida. E por isso é que é importante ter grupos civis que funcionem como lobbies ao poder político. Por isso é que é importante garantir que as pessoas têm liberdade para promover essa luta. Por isso é que é importante que todas as pessoas que acreditam que algumas coisas estão mal façam qualquer coisa. Porque se fizerem, haverá menos mártires não intencionais.
A garantia da prevalência de direitos humanos e de liberdades individuais é tão importante como a garantia do respeito pela vida. E isto porque viver uma vida é muito mais do que sobrevivê-la. É saber que se pode gostar de um rapaz ou de uma rapariga e não haver nada de errado nisso. É saber que não há KKKs a incendiarem casas e a matarem pessoas. É saber que um muçulmano aceita um cristão, um cristão aceita um muçulmano e que ambos aceitam ateus.
De cada vez que, em Portugal, me encontro com amigos homossexuais em sítios públicos e percebo que não se sentem sequer confortáveis em ter manifestações normais de afecto, tenho vontade de bater às pessoas que estão por perto. Porque não devia ser assim. E por isto, sim, eu devo lutar. Todos vocês devem lutar. Quando uma coisa ridícula como casar não é permitido a alguém só pelo sexo das pessoas; sim, deve lutar-se.
Esta é a minha pequena tentativa activista. Um dos meus gritos como os banners ali na barra de lado. Mas é também a minha tentativa de dizer que o activismo só vale a pena porquanto permite viver melhor. E ser morto por isso (à excepção de quem, legitimamente, acha que essa também é uma via) em geral não vale a pena.
Porque se o activismo normalmente tem inerente características sociais (pelo menos no que eu me quero referir aqui), é sempre verdade que a sociedade é composta por indivíduos. E por muito que às vezes me digam que o todo é maior do que a soma das partes, eu vou continuar a achar que o todo será sempre menor do que um indivíduo que seja. E eu não acho que haja um bem maior na sociedade, per se. Mas há um bem muito maior em cada indivíduo de cada sociedade.
Por isso deixa-me muito contente sempre que cada pessoa dentro “da sociedade” pode fazer algo que a deixa um bocadinho, um bocadinho que seja, mais feliz por causa de um objectivo atingido na luta pela garantia de direitos humanos e de liberdades individuais.
E ainda assim. Há uma angústia terrível que não me abandona. Há uma angústia terrível porque penso em todos os activistas mortos. Em todos os activistas que, ainda que garantindo a melhoria de condições de vida para alguns indivíduos, tiveram a sua vida pessoal arruinada.
Choro. Choro pela injustiça. De todos os casos que aconteceram. E porque sei que vai continuar a acontecer.
1 Para garantir a veracidade das coisas, note-se que esta visão só é abordada no filme na segunda relação de Milk. E eu escrevi o texto antes de ver essa parte do filme, portanto refiro-me à primeira relação retratada no filme.
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