A voz que lê
«Quando leio,
há uma voz que lê dentro de mim.
(…)
É uma voz de
falar. Penso que é uma voz que não ouve. (…) Quando me fala de pessoas e coisas
verdadeiras, volto atrás. Pára em frases e repete-as porque quer que eu as
entenda completamente. Eu, que não sei se entendo, ouço-a, admirado com as
palavras. Não foram poucas as vezes que a voz que ouço quando leio me fascinou
com palavras que disse. (…) Muitas vezes essa voz iluminou lugares dentro de
mim: túneis que não conhecia. (…) Eu sei que a voz que ouço quando leio não tem
medo. Eu sei que essa voz me conhece melhor do que eu me conheço a mim próprio.
Diante de poemas, a voz caminha por dentro das palavras. Dentro de cada
palavra: túneis de palavras reflectidas em espelhos à frente de espelhos. Avança
por esses túneis de palavras multiplicadas como se desenhasse mapas dentro de
cada palavra. Ao fazê-lo, avança por túneis dentro de mim e ajuda-me a desenhar
um mapa de mim. Eu ouço-a. Fico a ouvi-la durante horas e tento não esquecer
nada porque quero aprender a perder-me menos vezes de mim próprio.
(…)
Essa voz que
ouço quando leio é parecida com a voz que ouves agora ao ler estas palavras. (…)
Enquanto pensas, estas palavras são o silêncio. Eu não sei aquilo em que
pensas. Eu não posso saber aquilo em que pensas. Para falar contigo, eu preciso
da voz que ouves quando lês. Se queres ouvir aquilo que acabei agora de te
dizer, tens de voltar atrás.
Talvez já
tenhas percebido que eu não sou eu. Eu sou a própria voz que ouves quando lês.
Hoje, pela primeira vez, quero falar directamente contigo. Quero dizer que
existo nestas palavras. Através delas, quero apenas dizer-te que existo. Estou aqui.
As palavras que te digo desde que aprendeste a ler, a ouvir-me, são o meu
corpo. Eu sou todas essas palavras. Sou as palavras que deixei dentro de ti e
que sabes de cor. Sou as palavras que esqueceste. Durante este tempo, disfarcei-me
de muitas vozes, de muitos rostos. Sou todos eles, contigo, em ti.»
José
Luís Peixoto, ‘A voz que ouço quando leio’, em «Abraço», Quetzal, pp. 149-151