Momentos de poesia 4

Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo ...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho ... E não sou nada! ...

Florbela Espanca, Livro de Mágoas

Pensamentos líquidos 30

Pontaria II

Não sei se já vos disse? Ah, pois, acho que talvez…tenho uma certa pontaria e maus timings.

Estou de volta aos dias em que me levanto muito cedo para chegar muito cedo ao Banco para depois ir para a faculdade, a correr, para chegar a casa, ainda a correr, tentar fazer qualquer coisa útil para a faculdade, sempre a correr, a esquecer o ginásio, mas a correr. Sempre a correr e, mesmo assim, sem tempo. Dói.

Ontem tive finalmente tempo para ir aos correios buscar uma carta registada. A notificação tinha, reconheço, chegado há mais de uma semana. Sempre a correr, falta de tempo. Reunião de condomínio nesse dia. Eu, idiota, com assignment de economia pública para entregar esta semana, decido ir. Sentido estúpido de obrigação.

Vou. Chego pontual. Poucas pessoas. Decido ir a casa buscar um capítulo do Stiglitz para deglutir enquanto espero, enquanto as pessoas se dispersam em diálogos semelhantes aos de elevador. Vou lendo. Pouco. Não é fácil: está frio.

Finalmente, quórum. Poucas pessoas, apesar de tudo. Eu a sentir-me perder tempo. Discute-se as contas de 2005 e a burla da empresa anterior de condomínio. Tempo. Discute-se as contas de 2006 e a rubrica a que as lâmpadas são afectadas. TEMPO. Custo de oportunidade. Ai. Perder tempo. O motivo pelo qual a rubrica é lâmpadas e ascensores. Eu, farta de estar em pé. Problemas diversos. Dívidas de condóminos. Eu. O meu assignment. O tempo, a passar. Passa rápido. Vou tentando ler: utilidade social Rawlsiana, Benthamite; lâmpadas? Véu de ignorância; portão da garagem? O gráfico a desfocar. É difícil, com os meus pés tão frios e uma dorzinha irritante na parte superior dos gémeos.

Tempo, tempo; aniquilei com isto a minha noite de economia pública. Tempo. Proposta de orçamento para 2007. Tempo, cada vez mais perto do dia seguinte. Penso em ir embora, sem a reunião ter acabado. Tempo custo de oportunidade. Tempo. Tenho vergonha de sair assim. Estado minimalista. Reeleição da empresa de condomínio. Nozick. Administradores residentes. Administradores residentes? Obrigatório? Critério para escolher administradores residentes. Não percebo. Saio? Critério: administradores residentes de entre os presentes, a começar do rés-do-chão. M****: vivo no primeiro andar. Dizem o meu nome. Digo ser eu, mas ser-me impossível qualquer cargo do género por pouquíssimo trabalho que implique. Esgrimo argumentos irrefutáveis, ataco o critério senseless; tenho um problema de vocabulário e só a palavra random passa na minha mente. Digo que o critério é random. Luto, argumento, quase me culpo publicamente por estar ali. Agora não é tanto o tempo que importa. É não ter mais uma preocupação que, mesmo insignificante porque a empresa de condomínio trata de tudo, numa função exponencial significa tudo. Ah, a função exponencial é a minha reacção a coisas que tenho que tratar. Cansada, peço para registarem a minha objecção, mas não consigo escapar-me à função.

Fiquei tão aborrecida. Comigo. Comigo. Comigo.

É muito, muito, difícil esta vida de adulta, com casa, emprego, graduation, e tentar manter uma vida mais que de sobrevivência…

Pensamentos líquidos 29

Flexibilidade e dever ou não ser assim…

Dizem-nos que devemos ser flexíveis, que é uma mais-valia, que só temos a ganhar com a capacidade de fazermos muitas coisas, coisas diferentes; que é bom ser versátil. Digo-vos eu: é mentira. Só perdemos ao ser assim. Acabamos a fazer o trabalho que não devemos, que não interessa, que é enfadonho, só porque também o conseguimos fazer e conseguimos fazê-lo bem. Conselho: mostrem-se inflexíveis; só bons a fazer os trabalhos interessantes porque senão… senão acabam a fazer o trabalho da treta.

Trivialidades 33

Pontaria

Num dos poucos dias em que poderia ver jogos do Australian Open, a Eurosport decide que ski alpino é mais importante...

Pensamentos líquidos 28

Respeito

Não arrancam as últimas páginas dos livros, pois não? Não tapam parte das esculturas, ou tapam? Não esborratam quadros, ou esborratam?

ENTÃO, POR QUE RAIO É QUE AS RÁDIO PERMITEM QUE SE FALE POR CIMA DO FINAL DE CADA FAIXA MUSICAL? OU PIOR, SOBREPÕEM PUBLICIDADE AOS ÚLTIMOS SONS?

Têm noção da falta de respeito que isso é para um artista? Na música erudita isto normalmente não acontece e eu não percebo o motivo pelo qual os outros músicos não merecem o mesmo respeito.


«Exijo muito respeito porque sei o que mereço (…)
É mesmo assim
É mesmo assim, puto – respeito!»

Da Weasel, É mesmo assim (o respeito)

Apontamentos fugazes 33

Descoberta recente

O cinzento não existe.

Poemas 11

Vício


Sei que jamais te direi o que pensei,
sei que és uma ténue imagem que não vi,
sei que esta é uma mágoa passada em que chorei,
mas não consigo deixar de pensar em ti.

Sei que a minha intensidade te assusta,
sei que sou excessiva neste querer que não te digo,
sei que esta dor é prematura e talvez justa,
mas este sentimento é um “dejà vu” de um filme antigo.

Sei que não me queres mas já me engano,
sei que estás longe e não te lembras do meu sorriso,
sei que vives alheio ao meu pérfido engano,
mas a tua presença é um vício de que preciso.

Sei que não pensas em mim neste momento,
sei que não sentirias saudade da minha existência,
sei que o meu toque é um medo violento,
mas não consigo calar a tristeza que chora na tua ausência.

Sei tão pouco e já me esforço por esquecer
porque o que sei é uma dor viciada em sofrer.


[Dezembro de 2001]

Apontamentos fugazes 32

Destesto pessoas que justificam os estereótipos.

Momentos de Poesia 3

Nox

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

Antero de Quental

Pensamentos líquidos 27

IVG. Novamente. Novamente.

Lá vou eu ter que voltar a falar da IVG e do referendo. Já não deveria ser necessário dizer grande coisa e parece que, afinal, é preciso dizer-se tudo. Outra vez. Outra vez. E outra vez. Seja.

Não tenho gostado das campanhas. Não falo da do não e da demagogia inerente porque não me merece sequer respeito. Critiquem-me o que quiserem, mas não admito a ninguém dizer que julga saber melhor o que eu devo fazer comigo do que eu. Tenho vontade de os mandar pôr os cor-de-rosinhas e os slogans num sítio que eu cá sei. Mas o sim. Bolas. Deveria ser diferente, deveria ser mais. É um sim porque todas as pessoas devem ter liberdade sobre o seu corpo. É tudo. É muito mais do que suficiente.

Mas reconheço o pragmatismo. Dói-me, mas reconheço. Se a campanha seguisse as linhas que em cima escrevi perderia votos do sim. É triste, é hipócrita, mas é verdade. E, por isso, infelizmente, muito infelizmente, estes meios de meio termo querem justificar o fim que é obter finalmente o tal sim como resultado global do referendo. Seja, se tem mesmo que ser. Acho que é melhor isso do que acabar tudo como está.

Mas é pena.

PS. Já agora espreitem este post do Boss.
Outro PS: Gostaram do cor-de-rosa?

Homenagens 9

José Luís Peixoto

Um livro de literatura não tem que ter uma história. Para ser sincera, gosto que não tenha. Gosto que, quando me perguntam sobre “a história” de um livro eu não tenha resposta e comece a divagar em reflexões. Mas não sei se já vos disse que não gosto nada que me perguntem qual “era a história” de um livro. É demasiado redutor. E ofende-me. E se me ofende a mim, é possível que ofenda ainda mais o escritor.

Um romance é muito mais do que uma história contada. E é aqui que – eu feliz por o poder dizer – está o último romance do José Luís Peixoto. Recomendei-o sem o ler. À confiança, sabem? É uma daquelas certezas. E agora confirmo, depois de o ter lido.

Não sou crítica literária; não quero ser. Prefiro escrever. Mas quero dizer algumas coisas sobre o livro. A escrita do JLP está mais fluida do que nos romances anteriores, é um livro menos negro do que os outros, principalmente do que “A casa na escuridão”, mais simples provavelmente, mas há coisas fantásticas nele. Admiráveis. Ele continua a escrever com um certo ritmo interno (o ex-libris do ritmo interno é António Lobo Antunes: percebem o que quero dizer?), um ritmo muito característico; aqui juntou uma maneira diferente de tratar o tempo, analepses sucessivas, misturadas, alternadas, um bocadinho à Vergílio Ferreira mas num conjunto muito permeável. É uma escrita muito doce, que embala, mesmo quando em dor. Há quase um paradoxo na fluidez e na densidade, mas não julguem que por ser paradoxo é mau.

E depois há uma coisa que vai parecer quase ridícula, mas passei o tempo todo que lia a pensar nisso. O JLP reinventou aqui o uso dos ‘dois pontos’; eu, que considerava os ‘dois pontos’ o sinal de pontuação menos interessante, reconsiderei pelo uso inteligente que ele lhe devolveu. Para terem uma noção, vou fazer uma maldade: retirar frases soltas e colá-las aqui: mas não as descolem do todo. Percebem?

«E os sons puros: nítidos no silêncio: desenhados no ar a demorarem-se breves a ecoarem na memória e a deixarem outro silêncio: outro silêncio: outro silêncio diferente.» pp 36 e 37

«Não sei como fui capaz de flutuar na vastidão dos seus olhos: o horizonte: e perguntar-lhe se o italiano não tinha deixado nada para mim. Não sei como não morri: o coração a rebentar-me no centro do peito: quando ela, sem parar de olhar-me: a pureza e a beleza: abanou a cabeça, tão devagar, para um e para outro lado: a pele lisa do seu pescoço: a maneira como os meus dedos poderiam deslizar, demoradamente, sobre a pele lisa do seu pescoço.» pp.65 e 66.

«Pousou-me o relógio na palma da mão e, depois, deixou a corrente deslizar e dobrar-se e aconchegar-se: um ninho: na palma da minha mão.»

«Correr é estar absolutamente sozinho. Sei desde o início: na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio.» p.135

«Dessas palavras soltas, espaçadas: quase apenas as suas sílabas: cresceram frases.» p.215


Havia outras coisas para escrever, mas muitas ficaram nos momentos em que eu lia cada palavra, cada frase, cada parágrafo; naqueles momentos íntimos. Importantes. Na experiência de ter lido. E no fundo é só isso que importa. E importa.

Lembro-me de, depois de assistir a uma “conversa de café”, na qual o JLP falou do que escrevia, dele, de coisas que lhe quisemos perguntar, ter pensado «o mundo ainda não está perdido; ainda há a possibilidade de ser um mundo bom». Enquanto alguém escrever assim e for lido assim, há esperança para as pessoas.

Garanto-vos.

Arquitectura, artes plásticas e design 6

Rodin - Fugit Amor

Auguste Rodin, Fugit Amor (detalhe), 1887, mármore

Pensamentos líquidos 26

Cemitério de Pianos II

«- A minha mãe está do trabalho. Volta às dez horas.
- Está do trabalho? Mas… ela disse-me que voltava às trinta e duas horas.
O Hermes abre os olhos todos, abre a boca em espanto simulado, com choque simulado, e diz:
- Às trinta e duas horas?
- Ah, não. Desculpe, senhor. A minha mãe volta às setenta e quarenta horas.
Como se estivesse admirado, o Hermes abre ainda mais os olhos e a boca. Do fundo dessa surpresa, diz:
- Às setenta e quarenta horas?
Durante um instante, a Íris não diz nada. Fica à espera. Os seus ombros finos tremem quando se ri. A Ana e a Elisa sabem que são mais crescidas e estão a conversar, sentadas em cadeiras pequenas, sob a claridade da janela. O Hermes levanta-se, puxa o braço da irmã e diz:
- Ela está a dizer que a mãe volta às setenta e quarenta horas…
A Íris ri-se sozinha. A Ana e Elisa olham na sua direcção e sorriem. A Ana diz:
- Oh…
A Íris, no meio de rir, diz:
- Volta às mil horas.
A Ana, a rir-se, olha para a Elisa e roda o indicador na testa. A porta abre-se de repente. A minha mulher, sem entrar, chama a Íris. Vem buscá-la para dormir uma sesta. O Hermes começa a fazer uma birra. Quer que a prima continue a brincar. A minha mulher começa a ralhar com ele. Ele vai começar a chorar, vai mesmo começar a chorar, quando levanta o carrinho dos bombeiros e o atira para o chão com toda a força.
A Íris tem quase três anos. Chega-se ao pé dele, encosta o dedo aos lábios e, muito séria, só para o Hermes ouvir, diz-lhe:
- Não choras. Eu vou dormir a sesta com a avó, mas volto ontem. Está bem? Volto às setenta e quarenta horas.
E deu-lhe um beijo na face.»

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, Bertrand Ed., pp. 175 e 176