Homenagens 9

José Luís Peixoto

Um livro de literatura não tem que ter uma história. Para ser sincera, gosto que não tenha. Gosto que, quando me perguntam sobre “a história” de um livro eu não tenha resposta e comece a divagar em reflexões. Mas não sei se já vos disse que não gosto nada que me perguntem qual “era a história” de um livro. É demasiado redutor. E ofende-me. E se me ofende a mim, é possível que ofenda ainda mais o escritor.

Um romance é muito mais do que uma história contada. E é aqui que – eu feliz por o poder dizer – está o último romance do José Luís Peixoto. Recomendei-o sem o ler. À confiança, sabem? É uma daquelas certezas. E agora confirmo, depois de o ter lido.

Não sou crítica literária; não quero ser. Prefiro escrever. Mas quero dizer algumas coisas sobre o livro. A escrita do JLP está mais fluida do que nos romances anteriores, é um livro menos negro do que os outros, principalmente do que “A casa na escuridão”, mais simples provavelmente, mas há coisas fantásticas nele. Admiráveis. Ele continua a escrever com um certo ritmo interno (o ex-libris do ritmo interno é António Lobo Antunes: percebem o que quero dizer?), um ritmo muito característico; aqui juntou uma maneira diferente de tratar o tempo, analepses sucessivas, misturadas, alternadas, um bocadinho à Vergílio Ferreira mas num conjunto muito permeável. É uma escrita muito doce, que embala, mesmo quando em dor. Há quase um paradoxo na fluidez e na densidade, mas não julguem que por ser paradoxo é mau.

E depois há uma coisa que vai parecer quase ridícula, mas passei o tempo todo que lia a pensar nisso. O JLP reinventou aqui o uso dos ‘dois pontos’; eu, que considerava os ‘dois pontos’ o sinal de pontuação menos interessante, reconsiderei pelo uso inteligente que ele lhe devolveu. Para terem uma noção, vou fazer uma maldade: retirar frases soltas e colá-las aqui: mas não as descolem do todo. Percebem?

«E os sons puros: nítidos no silêncio: desenhados no ar a demorarem-se breves a ecoarem na memória e a deixarem outro silêncio: outro silêncio: outro silêncio diferente.» pp 36 e 37

«Não sei como fui capaz de flutuar na vastidão dos seus olhos: o horizonte: e perguntar-lhe se o italiano não tinha deixado nada para mim. Não sei como não morri: o coração a rebentar-me no centro do peito: quando ela, sem parar de olhar-me: a pureza e a beleza: abanou a cabeça, tão devagar, para um e para outro lado: a pele lisa do seu pescoço: a maneira como os meus dedos poderiam deslizar, demoradamente, sobre a pele lisa do seu pescoço.» pp.65 e 66.

«Pousou-me o relógio na palma da mão e, depois, deixou a corrente deslizar e dobrar-se e aconchegar-se: um ninho: na palma da minha mão.»

«Correr é estar absolutamente sozinho. Sei desde o início: na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio.» p.135

«Dessas palavras soltas, espaçadas: quase apenas as suas sílabas: cresceram frases.» p.215


Havia outras coisas para escrever, mas muitas ficaram nos momentos em que eu lia cada palavra, cada frase, cada parágrafo; naqueles momentos íntimos. Importantes. Na experiência de ter lido. E no fundo é só isso que importa. E importa.

Lembro-me de, depois de assistir a uma “conversa de café”, na qual o JLP falou do que escrevia, dele, de coisas que lhe quisemos perguntar, ter pensado «o mundo ainda não está perdido; ainda há a possibilidade de ser um mundo bom». Enquanto alguém escrever assim e for lido assim, há esperança para as pessoas.

Garanto-vos.

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