Crise lamentável
Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe…
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.
Viver em casa como toda a gente.
Não ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.
Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.
Ter força num dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai:
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
– Não andar por Paris, como ando, às moscas.
Levantar-se e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir prà rua.
– Pôr termo a isto de viver na lua,
– Perder a «frousse» das correntes de ar.
Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento.
Que tudo é mim é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o Oiro em chumbo se derrete
Por meu azar ou minha Zoina suada…
Mário se Sá Carneiro, 1916, Paris
Momentos de poesia 12
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