Homenagens 2

Análise comparada de dois poetas que admiro

Ou de um poeta e um músico, ou de dois escritores... mas seja o substantivo (ou substantivos) qual(ais) for(em), de duas pessoas geniais.

VIII – Quasi

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa ...
Se ao menos eu permanecesse aquém ...

Assombro ou paz ? Em vão ... Tudo esvaído
Num grande mar enganador d´espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor ! - quasi vivido ...

Quasi o amor, quase o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão ...
Mas na minh´alma tudo se derrama ...
Entanto nada foi só ilusão !

De tudo houve um começo ... e tudo errou ...
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim ...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou ...

Momentos de alma que desbaratei ...
Templos aonde nunca pus um altar ...
Rios que perdi sem os levar ao mar ...
Ânsias que foram mas que não fixei ...

Se me vagueio, encontro só indícios ...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d' heroi, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios ...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí ...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi ...
(… )

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe d´asa ...
Se ao menos eu permanecesse aquém ...

Mário de Sá-Carneiro (1913)
[Poemas Completos, Assírio e Alvim]



Capitão romance

Não vou procurar quem espero:
Se o que eu quero é navegar!
Pelo tamanho das ondas
Conto não voltar.

Parto rumo à primavera,
Que em meu fundo se escondeu!
Esqueço tudo do que eu sou capaz:
Hoje o mar sou eu...

Esperam-me ondas que persistem,
Nunca param de bater!
Esperam-me homens que desistem,
Antes de morrer!

Por querer mais do que a vida,
Sou a sombra do que eu sou.
E ao fim não toquei em nada,
Do que em mim tocou.

Eu vi,
Mas não agarrei...

Parto rumo à maravilha,
Rumo à dor que houver pra vir.
Se eu encontrar uma ilha,
Paro pra sentir!

Dar sentido à viagem,
P'ra sentir que eu sou capaz!
Se o meu peito diz coragem,
Volto a partir em paz.

Eu vi,
Mas não agarrei...


Manel Cruz
[O monstro precisa de amigos, 1999]




Demorei muito tempo a escrever este post. Queria que ficasse bom; no mínimo, justo. Mas para ficar justo teria que ser muito bom. Muito bom, mesmo. Porque há aqueles que são bons naquilo que fazem e há os outros. Os geniais. Os que fazem a grande diferença. O Mário e o Manel pertencem a este grupo.

Um dia, inidentificável, ouvia o Capitão Romance e comecei a vislumbrar uma ligação poética entre o Mário e o Manel. Um certo contentamento fez tremer o meu corpo.

Entretanto não consegui evitar classificá-los, como sempre. Ainda que desnecessário, eu precisava de saber dar um nome à ligação. Acho que há umas ideias de Wittgenstein que adopto facilmente. Se eu me entendo com a linguagem, eu tenho que saber dizer tudo o que existe. Mesmo que leve tempo. Chamei-lhes “poetas da inconcretização”. De chegar tão perto, mas nunca agarrar.

Mas a inconcretização que achei neles é mais do que o não atingir. Por querer mais do que a vida / sou a sombra do que eu sou / e ao fim não toquei em nada / do que em mim tocou. É reconhecer a incapacidade de exaurir o sabor às coisas, de experimentá-las até lhes esgotar o que podem dar, é a impossibilidade de atingir a intensidade potencial. Mas eles sabem-no porque estão perto. Porque, à Sá Carneiro, tudo encetaram e “nada” possuíram.

Em Sá Carneiro, esta inconcretização é levada a um extremo de sufoco. Como no Outro, quando se é qualquer coisa de intermédio. Um dia, ao ouvir a Adriana Calcanhoto dizer pilar da ponte do tédio, senti esta inconcretização de forma abismal: uma ponte permite levar alguém de um lado ao outro, permite evoluir, mas o pilar da ponte está sempre ali, naquele sítio, pespegado ao chão, tão perto do que permitiria atingir outras coisas, mas a saber que jamais o fará. Que inconcretização pode ser maior? Estar perto e não ultrapassar, ver mas nunca chegar. Mesmo que o esforço seja incomensurável.

No entanto, se não fosse querer o que não se tem, o que seria dos nossos objectivos? Provavelmente um sufoco insuportável. Portanto estamos aqui entre o sufoco e a inconcretização. Eu? Eu prefiro a inconcretização.

Nunca poderei dizer a minha admiração ao Mário de Sá Carneiro. Posso escrevê-la ao Manel. O Manel é uma necessidade da qual gosto de precisar. Porque me faz tão bem, seja a canção triste ou não. Porque gosto das perguntas, gosto da inquietude, inevitavelmente. É engraçado como a inquietude dos outros, às vezes, me aquieta sem todavia me tornar indiferente.

Ler Sá Carneiro e ler/ouvir o Manel é sentir uma compreensão ainda antes de ela existir. Porque é uma compreensão que me oferecem sem me terem conhecido. É reconhecer uma autenticidade inatingível de outro modo, é sentir laivos de verdades que foram já experimentadas por outros mas que só eu posso criar para mim.

Fica o agradecimento por me oferecerem essa compreensão. Porque aquilo que escreveram e escrevem me alivia o “modo confuso de sempre”, como disse o Vergílio F..

Pronto, agora que isto está prestes a roçar a lamechice, espero que o Manel goste de Sá Carneiro :-). E, já agora, tenho saudades dos Ornatos. Mas já que isso é inevitável, Foge Bandido, mas não fujas para muito longe de mim. Fica, pelo menos, à distância de um CD…

1 comentário:

Anónimo disse...

Sublinho e enalteço a admiração pelo génio do "Eu-ismo" cuja "vida não tem nexo dar-lhe um rumo é da-lhe um fim". Quanto a Sá-Carneiro ainda não posso opinar. Não foi "ópio nem morfina", mas antes este salutar vício de necessitar da genialidade do Manel Cruz que me faz venerá-lo.