Fernando PessoaReparei que tenho repetido à exaustão a expressão “há coisas”. De facto, há. E aqui, mais uma; uma daquelas coisas que merece ser tratada com delicadeza. A minha rubrica homenagens tem andado “esquecida” porque requer tempo. Não escrevo para ela por impulso como para as outras coisas, lá está. E há um senhor, um senhor cuja homenagem há algum tempo anda a marinar na minha mente. Vamos lá ver o que consigo fazer disto. Não ambiciono sequer estar à altura. Cairia certamente.
Quando comecei a ler Fernando Pessoa, senti-me arrebatada. Com a confusão. Com o… mar de sargaço. Com a coerência daquela profusão de sentimentos, sensações, ideias aparentemente incoerente.
Quando gosto muito de alguma coisa tenho alguma dificuldade em escrever sobre ela porque quero escrever muito bem. Com este receio nos dedos, escrever o
post sobre Fernando Pessoa tornou-se difícil.
Mas nos últimos tempos voltei a ter uma vaga Pessoana. Primeiro, a minha irmã começou a estudar Fernando Pessoa nas aulas e as nossas conversas sobre ele recomeçaram. Como na altura em que lemos o Livro do Desassossego. E a excitação. A maioria dos colegas dela já criou aquela antipatia por ele porque “não percebem”. Nunca achei Fernando Pessoa inacessível, difícil. Sempre me fez muito sentido,
alas…
Depois, um mote que aligeira as coisas. Os
Wordsong decidiram cantar
Fernando Pessoa, mais heterónimos que ortónimo, mas decidiram cantá-lo. E eu achei bem. Eu acho bem. A música deles tem qualquer coisa de muito teatral, mas é uma maneira óptima de desmistificar Fernando Pessoa. Para os colegas da minha irmã…
Entretanto, porque andava em busca de um poema a propósito de um
post, descobri um
site enorme com poesia Pessoana. Parece-me que tudo isto justificaria um
post, não estivesse já ele justificado por Fernando Pessoa ter escrito o que escreveu.
Eu não quero dizer muito sobre ele. Só que é muito bom quando nos deixamos estimular pela sua poesia e pela sua prosa. Sentir as picadas da incerteza. Da inquietude. Do… desassossego. Por isso, em vez de falar sobre o ortónimo (que é o meu preferido), dos heterónimos, dos semi-heterónimos, decidi escolher um poema de cada (ortónimo e heterónimos). Obviamente dos meus preferidos por um motivo ou outro. Deixo-vos com ele. Estão na melhor companhia.
Tudo o que faço ou medito
Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
[Fernando Pessoa - ortónimo, Cancioneiro]
Falas de civilização
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
[Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos]
Começo a conhecer-me. Não existo
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
[Álvaro de Campos]
Vivem em nós inúmeros
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.
[Ricardo Reis]