Contos 8

Ciclo D - Raio verde

Naquela noite, os olhares foram mais prolongados. Fluía uma vibração diferente, ou era talvez uma necessidade minha. Uma maneira tosca de colmatar a falta de outra coisa. A inconcretização.
Paradoxalmente. A sobre-análise traía os resultados, nulos. Nunca saber. Por mais que se busque respostas, esclarecimentos, verdades; por mais que se busque a essência. Porque a essência é já criada e não se pode agarrar o que mudado é pelo processo de agarrar. Por isso os olhares eram já fruto da busca e não uma busca em si. Apetecer-me tanto chegar a minha cabeça para perto do teu ombro era só um reflexo da necessidade. De ti? Nunca o saberei. Desenhar as tuas mãos perfeitas na minha mente problemática era aplacar a incerteza com o imediato de estares ali, tão perto de mim, a partilhares olhares que eu via prolongados, que eu sentia vibrantes, ocultantes de uma realidade que se sabia maior do que a visível.
Um desequilíbrio não aparente. Enquanto evidenciava reacções conexas ao que é esperado de cada um, percurso sem curvas de hesitação. A proximidade de alguém como tu foi o móbil de um crime do qual fui vítima e criadora. Uma dor constante.
Em momentos escusados, podia ter tentado o inimaginável, o negado já antes de existir, o desmentido antes de o pensar, mas não tinha direito de o fazer. Era suficiente que a confusão fosse minha e com ela a angústia, não precisava de repercutir os resultados negativos de mim em ti. E todavia, fazia pouco sentido não aceitar que pudesses também tu ter ideias confusas, desconexas, intermitentes; paixões diárias ou sentimentos ilusórios, descontínuos. Tentativa. Merecíamos tentar; se os olhares, se os olhares prolongados fossem verdade.
Mas enquanto a tentativa escoava nos segundos fugidios, a oportunidade escapava-se por entre os dedos abertos. Não entre os teus dedos esguios, perfeitos.
Depois o toque dos nossos braços. Suave. Furtivo. Expectante ou só eu o sentia assim, propositado? Escondido em movimentos naturais, espontâneos para todos que não nós. Que não eu? Que não eu. Criava a minha ilusão em toques vibrantes de pouco significado coerente, mas havia um fluxo de energia a percorrer-me o corpo de emoção, como adolescente. Bom. Tão bom reprovar aquela sensação de explosão contida, aquela sensação de novidade inultrapassável. Aquele raio de energia intensa. Se te encontrasse os olhos agora, no momento certo. Teria que ser no momento certo. No único momento possível em que os teus olhos me levassem à tua boca nua, expectante, entreaberta de indecisão. A tua boca como eu.
Se encontrasse os teus olhos agora, direccionados a mim, desviarias o olhar, fixarias com obstinação a minha boca. Os meus olhos ser-te-iam proibidos até a tua boca conhecer a minha de cor. E no entanto. Se no momento de raio verde, encontrasse os teus olhos poderia criar uma verdade inexistente, uma verdade primordial, só para nós; uma verdade que só existiria para acomodar a audácia de não ser provável. Forçada? Um esforço de esconder a infelicidade, um conforto mentiroso?
Mas se encontrasse os teus olhos, assim, talvez agora, já preparados para o meu olhar, se… se os olhares prolongados fossem verdade e, talvez num momento instantâneo desses, talvez… agora, se encontrasse os teus olhos direccionados a mim, mesmo sem pensar se seria correcto ou não, talvez, nesse momento de raio verde, em que o horizonte era a linha dos teus olhos, talvez pudesse beijar os teus lábios com a indecisão da tortura mas com a felicidade da tentativa.
Enganar-me-ia se o fizesse? Querê-lo-ias? Magoar-te-ia muito se um dia depois, uma semana depois, um mês depois se, passado um tempo indefinido descobrisse que eras a janela do salto alternativo, a compensação de não ter tido outro olhar, desse outro olhar não ter sido repetido ao cansaço dos olhos com alguém que não tu? Valeria a pena o risco? O risco de cruzar o teu olhar no horizonte da linha do raio verde?
[Fevereiro de 2006]

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